A ironia do engajamento ou o engajamento da ironia

Marcilio_NY_16

A tragédia grega clássica fala da relação do homem com o destino. Édipo mata o pai e se casa com a mãe porque estava escrito na ordem cósmica e tinha que acontecer. Acima da vontade do arrogante ser humano estaria um destino imutável e inelutável.

No entanto, há um aspecto na obra de Sófocles interessante de discutir. Não é que não haja o reconhecimento da força transformadora da ação humana. A Tragédia supõe que, ao agir segundo seus próprios desígnios, o homem transforma o mundo, altera o futuro. Mas não necessariamente no sentido que pretende, acrescentaria o velho Sófocles. Este o detalhe para o qual chamo a atenção.

Desejoso de saber o que vai acontecer, Édipo consulta o oráculo e lhe é dito que vai matar o pai e casar-se com a mãe. A fim de evitar perspectiva tão desditosa, ele abandona a família e foge da cidade. No caminho, se enraivece com um homem e o mata, sem saber que é seu pai biológico. A seguir, soluciona o enigma que a terrível esfinge lhe propõe, libertando assim a cidade de Tebas da maldição. Como prêmio, recebe a rainha viúva em casamento, sem saber que é sua mãe verdadeira.

Ou seja, ele age livremente para atingir o objetivo de se livrar da desgraça e toma decisões de acordo unicamente com a sua vontade, sem nenhuma interferência dos deuses. Com isto, muda de forma radical a realidade. Só que não a muda no sentido que pretendia. O resultado a que chega é o oposto do que almejava. Agiu para evitar o incesto e casou-se com a mãe; atuou para não se tornar parricida e matou o pai.

É a ideia mais perturbadora e mais fascinante contida no conceito do trágico: a ação do homem é eficaz, mas não necessariamente o leva aonde quer. Muitas vezes o conduz ao polo contrário. Age pelo bem e angaria o mal. O inverso também é possível: vai atrás do mal e alcança o bem.

Esta, a ironia do mundo. Ou, se preferirem, o fio com que os deuses tecem o destino dos escolhidos. Há um fragmento do velho Heráclito, que diz: “Para os deuses, todas as coisas são belas e boas e justas; mas os homens tomaram umas como injustas e outras como justas” (Fragmento 102). Nesta visão, os deuses estão se lixando para o sofrimento humano. Gostam de nos preparar armadilhas e dar gargalhadas com o nosso espanto quando as nobres expectativas batem com os burros n’água. É o seu passatempo.

Este o ponto que me interessa: a ironia. Porque a ironia é essencial à arte da escrita, e às outras também. Não quero dizer que o protesto, a indignação, a denúncia, a conclamação e a militância não tenham o seu lugar. O que afirmo é a superioridade da postura irônica, única forma que nos permite encarar a ironia do mundo com alguma altivez. Não diria ombrear com os deuses, mas pelo menos rir com eles, mostrar que, embora não possamos superar o papel de bobos que os sacanas nos destinam, também sabemos fazer a trama.

A ironia é um exercício da inteligência. Para não cair no alçapão que ela abre, há que usar a cabeça. A ironia estimula o pensar. E do que nós mais andamos precisando senão de pensar?

Reconheço que me incomodam os engajamentos hoje exigidos dos escritores. Não se trata mais de ser político; há que ser “politicamente correto”. O espantoso é que tem gente que não se intimida com o peso deste “correto”. Não faltam os empenhados em causas justíssimas; os defensores de verdades cristalinas; os tribunos de acusações irrefutáveis.

A ironia não pode ser politicamente correta, porque não expressa conteúdos, ainda que elevados. A ironia lida com o vazio. O velho Kierkegaard, no seu trabalho sobre a ironia, diz  assim: “A ironia é o jogo infinitamente leve com o nada, que não se assusta com ele, mas torna sempre a enfrenta-lo de cabeça erguida”.

Ainda com Kierkegaard: “…toda a existência se tornou estranha ao sujeito irônico e este por sua vez se torna estranho à existência…”.  O significado disto é liberdade subjetiva.

Sei que me falta competência para me aprofundar em assuntos filosóficos, por isso concluo este amontoado mais ou menos aleatório de considerações reiterando o palpite de que artisticamente a ironia é superior ao engajamento. Para citar um exemplo atualíssimo, “Parasita” se sustenta na ironia. Sem uma perspectiva irônica, creio que seja difícil evitar os alçapões conceituais do filme.