‘O crime da Gávea’ estreia nos cinemas e mostra o lado obscuro do bairro
Filme, que tem referências noir, teve baixo orçamento e foi gravado com clima familiar

Pedra da Gávea e seus mistérios são abordados no filme, que estreia nesta quinta-feira – Divulgação

RIO — Uma célebre frase atribuída a Tolstói diz: “Se queres ser universal, comece por pintar a sua aldeia”. Inspirado na citação, o autor e roteirista Marcílio Moraes — conhecido por novelas como “Roque Santeiro”, “Irmãos Coragem” e “Sonho meu” — resolveu seguir o desafio de voltar sua criação para o próprio território com o propósito de falar de um todo. Morador da Gávea há mais de 20 anos — ele vive numa charmosa casa perto da floresta —, Moraes lança nesta quinta-feira nos cinemas o thriller policial “O crime da Gávea”, com direção de André Warwar e ambientado nas ruas de paralelepípedos, nos bares e nas casas do bairro. O filme, do qual Moraes é roteirista e produtor, é baseado em livro homônimo, escrito por ele em um escritório com vista para a Pedra da Gávea e para o Cristo Redentor — planos recorrentes do longa e que também aparecem como contraponto entre o mistério e a religião, respectivamente.

Do agitado e boêmio bairro da Zona Sul, nasce um ambiente sombrio, onde a mulher de Paulo, interpretado pelo ator Ricardo Duque, é assassinada. Personagens mundanos e suas complexidades transitam pelo bairro num film noir que também mescla referências literárias de grandes escritores do gênero como Rubem Fonseca, Luiz Alfredo Garcia-Roza e, claro, Dashiell Hammett (escritor americano e um dos precursores da literatura noir).

— Essa é uma estética de que sempre gostei muito. Via muitos filmes noir. Então, o livro tem isso e o filme também. O detetive que investiga é nefasto. O Paulo é um cara bastante frio. A intenção foi trazer à tona um espírito sombrio da vida e não o lado luminoso e festivo do Rio. Essa não é uma característica do bairro da Gávea, mas é do Brasil. O filme mexe com o lado podre e violento da sociedade — afirma Moraes.

Ricardo Duque interpreta o viúvo Paulo

No livro, escrito em 2002 e lançado em 2003, o bairro está presente do início ao fim. O autor cita, por exemplo, algumas ruas da região, como a Macedo Soares; o vizinho Jardim Botânico; bares; e, principalmente, a Pedra da Gávea. No filme, o mesmo acontece. Quase todas as cenas internas foram gravadas em apartamentos e casas do bairro, com exceção da residência em que o crime ocorre, que fica no Horto. O próprio Moraes cedeu sua sala duas vezes para as gravações.

— Eu mesmo banquei a primeira parte do filme. É isso que acontece em uma produção independente. Como não alugamos estúdio, fizemos em casa, nas ruas próximas. As coisas se misturam à beça, mas é divertido — comenta Moraes.

Em um passeio junto com a equipe de reportagem, o roteirista relembra coincidências e curiosidades. Um dos personagens, o professor Jordão, mora na Rua João Borges. Isto não é mencionado no filme, mas a cena em que Paulo vai à casa de Jordão (ele acredita que o outro era amante de sua mulher) também teve como locação uma residência na via. Antes de escrever sobre a Pedra da Gávea, Moraes, que é fã de escaladas, resolveu ir até o topo da montanha pela primeira vez para mexer ainda mais com a sua imaginação e ver de perto todo o misticismo que ronda o local (ou a grande esfinge ali gravada). Andanças foram fundamentais durante todo o processo de criação, explica o autor, que se considera uma pessoa cuja imaginação é muito visual. Bastava passar por uma rua ou presenciar uma cena qualquer que seu processo criativo era despertado.

Marcílio Moraes em sua casa na Gávea: plano faz parte do filme – Fabio Rossi / Agência O Globo

Nas obras, a Gávea divide o protagonismo com o roteiro. Depois do assassinato de sua mulher dentro de casa, o editor de vídeo Paulo se torna o principal suspeito. Entre interrogatórios feitos em locais inapropriados por um inspetor corrupto, mas que ainda assim quer resolver o caso, Paulo começa a suspeitar de tudo e de todos. A confusão que se instaura em sua cabeça é a mesma vista nos planos do filme.

— Eu gosto muito de metalinguagem. O cara é um editor de vídeo e, por isso, o filme é a cabeça desse montador. É uma mente confusa, que pensa no que vai acontecer lá na frente e depois lembra de uma coisa que já aconteceu… O filme é um delírio, é o Paulo tentando montar um quebra-cabeça como um editor faz em uma sala de montagem — explica o diretor André Warwar, que optou por quebrar o eixo da câmera (mudança de direção do elemento que está sendo filmado) diversas vezes durante a filmagem.

Com baixíssimo orçamento, Warwar usou alguns critérios para viabilizar o longa. Eles foram inspirados no Dogma 95, movimento internacional criado pelos cineastas dinamarqueses Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, cuja intenção era realizar um cinema mais realista.

Assim, o filme teria que ter poucos personagens, locações e trocas de roupas (este quesito não foi obedecido), além de não contar com suporte de câmera, a não ser tripé, entre outros critérios que viabilizariam financeiramente “O crime da Gávea”.

A falta de verba fez com que as filmagens ocorressem, muitas vezes, escondidas, só com a luz de postes (a iluminação artificial chamaria muita atenção). Os “jeitinhos” foram, segundo Warwar, fundamentais para o resultado final: um filme cheio de sombras e penumbras, bem noir. As interpretações dos personagens também seguem a estética. São mais contidas, com pausas, silêncios, muitos gestos e técnicas de olhar para a câmera.

— O fato de não termos muita luz trouxe uma atmosfera legal para o flime. Valorizou as sombras, o contraluz, as penumbras, o trabalho do ator e muitas outras coisas que surgiram justamente por ser um processo artesanal. O longa é como uma entidade, vai se transformando, e se você não estiver antenado, ele pode ficar sem alma. Não foi o que aconteceu — diz o diretor.

André Warwar listou critérios para gastar pouco com o filme – Divulgação/Moskow

Assim como Marcílio Moraes, Warwar tem uma relação próxima com o bairro. Seu pai tinha cavalos no Jockey e ele costumava frequentar o espaço, bem como o Parque da Cidade e o Baixo Gávea. Mas, diferentemente do roteirista, o diretor acredita que teve mais facilidade ao decidir as ruas que seriam usadas como locação.

— A Gávea é um ambiente familiar para mim, me traz muitas recordações. Não precisava ir várias vezes aos lugares de gravação. Por já conhecer muito bem, tinha tudo integrado. Já a Pedra da Gávea não era o meu ambiente, tinha apenas uma referência da infância, com o filme “Roberto Carlos e o diamante cor-de-rosa”. Aí, sim, tive que buscar referências. Fotografei de vários ângulos, li sobre seus mistérios, mergulhei no misticismo — diz Warwar.

ENTRE AMIGOS E FAMÍLIA

Morador da Gávea há 28 anos, o protagonista Ricardo Duque, que contracena com Simone Spoladore, a Elisa, é um apaixonado por cada particularidade da região. Fala com todo mundo por onde anda. Saiu de Macaé quando tinha 15 anos e se mudou para o bairro, onde já vivia o irmão. Um ano depois conheceu sua mulher, Ana Paula Guimarães, diretora de novelas da Globo, com quem tem duas filhas. Os mesmos lugares que frequentou durante todos esses anos serviram como locação no longa.

— Toda a minha vida foi aqui. Mudei de casa, mas nunca quis sair do bairro. Fiz meu primeiro curso de teatro na Casa da Gávea, numa época em que cursava Relações Internacionais e resolvi largar tudo. Foi muito especial gravar aqui porque voltei a lugares que frequentava quando jovem, como o Parque da Cidade e o Baixo Gávea, e várias recordações vieram à tona. No dia da gravação no Jockey, me emocionei muito. Era uma noite de lua cheia e céu limpo, foi um grande momento — relembra Duque.

O ator classifica o filme como familiar. E é essa a característica principal dos bastidores de “O crime da Gávea”. Foi feito entre amigos e família. Filhos de Marcílio Moraes, Eduardo e Lúcia Quental são produtores executivos. Já a mulher de Warwar, Sabrina Moreira, que é figurinista da TV Globo, foi responsável pelo figurino, que ficava guardado em sua própria sala. O carro para transportar a equipe também era do casal. Mas o clima intimista ficou por vezes escondido diante de uma polêmica que evolveu autor e diretor alguns dias antes da estreia.

Quando os créditos aparecerem e “Um filme de” for atribuído a Marcílio Moraes, não há motivos para pensar que houve desentendimento entre ele e o diretor Warwar. O debate, levantado no meio cinematográfico há um tempo, reviveu depois que Moraes questionou o fato de a autoria do longa ser sempre do diretor.

— Um filme pode ser do roteirista, do diretor e até do músico. No “Crime da Gávea” fui eu que fiz o roteiro, produzi, tratei da pós-produção e do corte final — resume Moraes.

Warwar acredita que o crédito não desmerece o seu trabalho e garante que não houve ressentimento.

— Essa é uma bandeira dele, mas para mim não muda nada. Até acho o crédito cafona porque ninguém faz um filme sozinho. É sempre uma sobreposição de ideias — diz o diretor.