Roda de Fogo – Jornal O Globo / Segundo Caderno

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Jornal O Globo – Domingo, 22 de março de 1987

“Roda de Fogo”, uma das importantes realizações da Globo, em apreciação: o que foi, como folhetim de alto nível, como mensagem e como obra de bons autores que encontrou realizadores de inteligência, bom gosto e capacidade, que a respeitaram e enriqueceram, bem como os atores, grandes talentos interpretativos.

Um excelente trabalho de equipe

Quem já teve em mãos um moderno script de novela, sabe a enorme responsabilidade – e, ao mesmo tempo, a auspiciosa liberdade criativa – que é deixada pelo autor – ou autores – ao diretor – ou diretores. O trabalho de equipe resultaria, provavelmente, em muitas distorções de rumo, se não houvesse um responsável principal pelo texto e outro pela direção. O esquema tem resultado excelente e se confirma, agora, em “Roda de Fogo”: o texto de Lauro César Muniz e Marcílio Moraes tem perfeita unidade e assim se dá, também, com a composição técnica de Denis Carvalho e Ricardo Waddington.

Vale a pena dizer alguma coisa para além do conteúdo. Vale a pena registrar o espetáculo visual e auditivo e as nuances que ele apresenta. “Roda de Fogo” não foi apenas uma boa história, como um todo. Foi uma sequência de bons diálogos – com uma alternância muito hábil de discursos por vezes longos e sérios com outros amenos e até divertidos e uma coordenação inteligente das várias situações, jamais alongando demasiadamente qualquer delas, mas aproveitando o seu rendimento na medida exata. Foi, além disso, um trabalho de composição visual  extraordinariamente bonito, sem embargo da preponderância da ação em interiores, o que nem é notado pelo telespectador menos crítico, graças à mutação ágil das tomadas. Uma única ressalva, no que concerne à iluminação, pareceu-me exagerada a coloração azul dada a certas cenas para acentuar o seu sentido dramático. No mais, só louvores à vasta equipe de técnicos que contribuíram , cada um em seu setor, para permitir a montagem de uma obra tão homogênea, coerente e importante, não só da nossa dramatúrgica televisão, como da nossa realização artística de um modo geral.

Questionando sem a preocupação de julgar

“Roda de Fogo” foi uma novela de grandes questionamentos, mas que não se preocupou em julgar – condenar ou absolver – coisa alguma. Começou pela pessoa humana e pelo protagonista, Renato Villar, tão bem vivido por Tarcísio Meira. Quem é ele?Um inescrupuloso, um frio, um implacável, um aproveitador? Ou um homem que frustrados os seus amores  e ideais da juventude, impôs-se o objetivo de lutar pelo poder até que este, tão forte, se revelou frágil, ante o poder maior da morte? Quem é Mário Liberato, um perverso, um cínico – ou um dissimulado psicopata , desses tantos com os quais convivemos sem saber? Quem é a Juíza Lúcia, a magistrada que traiu os seus deveres ou a mulher apaixonada que teve a coragem de renunciar a uma carreira brilhante por um amor sem futuro?  Quem é o Juiz Labanca, um magistrado incansável e incorruptível ou um homem que se fragiliza ante o amor ao filho e à discípula, feita mulher, e esconde a sua fragilidade sob o manto de uma obstinação? Quem é Anselmo, o assassino profissional, o matador frio ou um homem primário, moldado por uma profissão que o obrigara a conviver toda a vida com a morte, a intriga e a corrupção?

Final coerente, sem ‘finais felizes’

A novela de Lauro César Muniz é – ao que me lembre – a primeira que ousou desrespeitar a tradição dos happy ends. A rigor, tudo termina mal para todo mundo em “Roda de Fogo”, coerentemente com os poderoso interesses em jogo, com as fortes personalidades em conflito, com as situações desesperadas que se foram armando ao longo da história. Não é um final feliz, para Renato Villar, morrer ao lado da mulher amada que espera um filho seu, apesar dos dias, semanas ou meses que tenha vivido naquele cenário paradisíaco. Nem é um final feliz, para ela, ter o homem amado por tão pouco tempo e ter de transferir as sobras imensas desse amor unicamente para o novo Renato que nasce. Muitos morreram – e assim é, também na vida real, para todos aqueles que se atrevem a participar de um jogo perigoso. É feliz Helena, morto o pai e mito, lançada a contragosto nos braços de um irmão que nunca reconheceu como tal? E Maura Garcez? Bastará para ela suas tantas recordações e aquela única viagem pelo passado, de tantas promessas frustradas?

Pequena é a cota dos finais felizes, todos eles eivados de certa melancolia: Pedro e Ana Maria, Joana e Gilson, Roberto Labanca e Vera, Helena e Gilberto. Só tabaco não se insere nesse contexto: seu final está mais para o tragicômico, ao lado da mulher de direito *Cláudia Costa), traído pelas ex-namoradas, mas sempre à disposição das eventualidades.