LACLOS – CONTO

/ 2016

A propósito do lançamento da minissérie “Ligações Perigosas” pela Globo, comentei no facebook sobre um conto que escrevi há uns 15 anos atrás, publicado na revista Ficções, número 10, da editora 7-Letras, que tem como tema exatamente esta obra e seu autor, uma homenagem, tanto que o conto se chama “Laclos”. “Les Liaisons dangereuses” é uma das obras que mais me fascinou na juventude.
Em função deste post, uma amiga sugeriu que eu publicasse o conto na internet, porque é difícil o acesso à revista. Concordei. Aqui vai o conto, para quem quiser conferir.

 

LACLOS

conto de

MARCILIO MORAES

 

Santo Antônio de Pádua, 5 de janeiro de 19..

Caro senhor … ,

Para lhe dar as informações que  pede em sua carta, sou obrigado a voltar 30 anos no tempo e  esclarecer o relacionamento que tive com a pessoa em questão. Ninguém mais, a não ser eu – e a partir de agora o senhor –  tem conhecimento integral do que se segue. Espero que a sinceridade que me permitirei seja de alguma valia.

O primeiro olhar foi na aula de Filologia. Ela entrou atrasada e precisou se esgueirar entre várias pessoas até uma carteira vazia, algumas filas adiante da minha. Antes de sentar-se, olhou casualmente para trás. Fosse porque eu a observava, desinteressado da aula, ou por motivo próprio, se fixou em mim aquele instante a mais que abre portas obscuras.

Confortável na retaguarda, pude examiná-la, enquanto o professor  derivava o português “fígado”  do particípio latino ficatu, de ficu < figo. Não era bonita, como o senhor poderá constatar nalguma foto daquele tempo, embora pessoalmente causasse impressão. Na época se diria que tinha glamour. Afirmo que era o sentimento de superioridade que  nutria, sabe-se lá por que,  que lhe sancionava o jeito arrogante.

Examinei o perfil. “Longe de ser  grego”, pensei, condicionado  por aulas de História da Arte. Os cabelos escorridos e o contorno do corpo, prosaicos,  não inspiravam metáforas. A combinação das cores no rosto, a textura intuída da pele por baixo dos panos e sobretudo aquela irritante afetação de… “marquesa” é que me instigaram.

Deixo bem claro que me senti atraído por ela neste exato momento para evitar  raciocínios simplistas. Explico:  logo depois ela estendeu o braço esquerdo por trás da cadeira da colega ao lado e pude ver a aliança dourada complicando a delicadeza dos dedos. Sabemos bem o quanto tal desafio pode excitar a imaginação de um jovem. Não foi meu caso. Devia ter a mesma idade que eu, 20 anos, ou pouco mais, se é que me faço entender.

Depois nos cruzamos nos corredores.  Nenhuma palavra seria necessária para nos juntar mas a trivialidade que me ocorreu para iniciar a aproximação, “ Vai na passeata ?” , rendeu bons minutos  de discussão. A primeira. Ela não simplificou as coisas dizendo  que não se interessava pelo movimento estudantil. Começou a desdenhar da política e da solução revolucionária,  o que eu, imbuído dos ideais que na década de 60 eram de rigueur,  achei que devia tomar como ofensa e responder com indignação –  havia lido um artigo falando da necessidade de se manter indignado diante do arbítrio. Experimentei esta posição e ela sentiu o gosto doce da minha contrariedade. Empinou mais o nariz. Reduziu-me a um simplório, enredado em coisas de menor importância. Reagi:  “Talvez a violência, a fome, a ditadura sejam coisas sem importância para pessoas da sua classe…” , querendo dizer classe burguesa, evidentemente, o que, na época, poderia ser tomado como sério insulto.

Olhou-me com aqueles olhos pequenos, no fundo dos quais já intuí um brilho extravagante, e sentenciou: “Se não me sentisse superior não estudaria Literatura”. Fiquei em dúvida se ela quis dizer que a burguesia era superior ou se considerava a si própria superior às classes. Achei mais provável a última hipótese e a admirei. Mas não daria o braço a torcer:  “A Literatura tem que ter compromisso”, reagi. “Não com a vulgaridade”, ela respondeu, com certeza querendo dizer que o engajamento era coisa da canaille.

Não atinei com  nada melhor que chamá-la de reacionária. Senti-me ridículo mas ela não riu. Pegou a bolsa e disse que tinha aula. Fazia o curso de Inglês, esclareceu.    “E você ?” “Francês”, respondi. “Não vamos nos encontrar muito”, ela concluiu.

Enquanto marchava pelas ruas do centro do Rio de Janeiro gritando palavras de ordem,  não conseguia tirá-la da  cabeça. Dei-me conta  de que nem tínhamos revelado nossos  nomes.  Em minha fantasia, apelidei-a marquise, sem suspeitar da macabra intuição que aí se insinuava.

Depois pensei nas razões do seu interesse, no porque daquela estranha atração que nos unira. Não era comum que mulheres me olhassem ou procurassem. Meus atrativos eram escassos. Vestia-me com mau gosto e usava desodorantes baratos, sem falar em alguns traços grosseiros do rosto, a denunciar sang mêlé. Que diabos ela vira em mim, ela tão sutilmente  perfumada, envolta em tecidos tão refinados e de cima daquele nariz tão empinado ?

Voltando para casa,  tarde da noite, transportei-me para Xangai. Ao abrir a porta, concluí que chegara o momento da experiência crucial. Entrei sem fazer barulho e me locomovi na penumbra. O quarto recendia a meias usadas e cuecas sujas. Não havia cortinado protegendo a cama mas o pé molengo para fora estava lá. O facho oblíquo de luz  projetado do prédio ao lado era perfeito. Palmeei a superfície da escrivaninha e empunhei o que podia ser a arma. Aproximei-me da cama e contemplei o corpo largado, o pé esticado para fora. Disse para mim mesmo que aquele homem precisava morrer. Ergui a arma e assim permaneci por bons cinco minutos, procurando registrar todas as sensações que me atravessavam.  Teria sido perfeito se a todo instante o nariz empinado da marquise não me viesse à memória, confundindo as idéias. Para evitar maior dispersão, resolvi agir rápido. Como Tchen, no livro, localizei o que devia ser o coração e golpeei com relativa força. Longe de morrer, meu companheiro de quarto pulou assustado da cama e deu um berro tão lancinante que o prédio inteiro ouviu. Acendi a luz para que ele se situasse e entendesse a situação.

Quando finalmente reconheceu que era eu que estava ali, sentou-se e ficou tremendo, sem forças para reclamar. Receei que passasse mal. Expliquei que quisera experimentar as mesmas sensações do personagem Tchen, de Malraux, na Condition Humaine, quando ele mata com a faca um sujeito dormindo. Mostrei a inofensiva régua que usara. Poderia ter falado  no entusiasmo de que estava tomado, por causa da marquise. Talvez fosse mais fácil para ele entender. Literatura não era seu forte.  Mas achei melhor não envolvê-la na questão.

Bateram na porta. Era a senhoria, dona do apartamento. Procurei tranqüilizá-la, tinha sido apenas um pesadelo. “É uma casa de família”, ela resmungou. E voltou para o quarto. Meu companheiro era um nordestino sério e calado, de origem das mais humildes. Chamava-se Aliomar.  “ Amanhã vou embora daqui. Você é maluco”, disse. De nada adiantou argumentar que tinha tomado umas batidas e estava me preparando para a revolução. Aliomar passou a noite em claro, sentado na cama,  me olhando. De manhã arrumou a mala e foi  procurar outro quarto. Fiquei deprimido. Meses depois, quando ele foi preso, entendi porque se assustara tanto. Aliomar era da direção de uma das dissidências do Partido Comunista. Nunca me havia dito nada. Devia estar sonhando com torturadores quando o usei como cobaia.

Por um lado, foi sorte nos termos afastado. Certamente eu também teria sido preso se continuássemos morando juntos.   Por outro, fiquei conhecido como “meio pancada” entre o pessoal da esquerda. O estigma me fez sofrer. Só não me desesperou,  porque já havia assumido a posição de Tchen na Condition e agora desprezava as soluções organizadas, burocráticas: meu sonho era um ato terrorista, individual, sangrento e cruel (como o de Tchen contra Chiang Kai Chek), com o qual responderia a minhas angústias mais profundas.

Angústias que me haviam amargurado desde sempre mas que só vieram à tona quando reveladas por Camus, em L’étranger , que estudáramos no ano anterior. A conscientização se completou com  Malraux, de quem começamos a traduzir  textos no período seguinte. Pelo que depreendi do personagem Tchen, matar  era  crucial.  Concluí que o sentido da existência só se abriria depois do crime.  “Agora que havia matado, tinha o direito de desejar fosse o que fosse”, concluíra Tchen. O assassinato, a morte, o gesto extremo capaz de reunir num único momento o sentido de uma vida, isso sim me fascinava, não os enjoados discursos políticos. O exemplo serve para que o senhor avalie  o quanto era perigosa a literatura.

Comecei a intuir a espécie de magnetismo que nos atraía, quando a marquise me fez saber seu nome: “Virginia…a mais adorada coincidência da minha vida”, ela disse. Diante da minha cara inexpressiva,  explicou : “Tenho o mesmo nome da escritora que mais amo…Virginia Woolf,  claro”. “Ah”, balbuciei, completo ignorante de Literatura Inglesa. Ela falou da admiração e intimidade que mantinha com a autora, sobre quem assistia a um curso desde o semestre anterior. Já havia lido, além dos textos curriculares, mais dois ou três livros dela. Falou de uma certa fleuma, pessimismo e melancolia. Achei-a afetada  e me ocupei em adivinhar-lhe as formas por baixo do vestido. Ela percebeu. Reagiu irritada. Atacou-me no flanco intelectual. Chamou-me de idiota e inculto. Mas não teve habilidade para esconder o prazer que meu olhar indiscreto lhe proporcionara. Não afirmo que tenha se excitado. Deleitou-se em descobrir o poder que estava a seu dispor.  Respondi que não tinha interesse em escritores ingleses. Citei Camus. Para minha felicidade, ela nem sabia quem era. Estávamos quites.

Tal antagonismo de visões poderia ter despertado em cada um de nós o interesse pelas leituras do outro. Nada disso.  Como eu não lia Inglês e ela muito menos o Francês,  continuei desconhecendo  Virginia Woolf e ela ignorando os franceses.  Hoje estou convicto que foi esta falta de…diálogo, digamos assim, que criou as condições para o que veio a acontecer.

Além da literatura, nosso relacionamento fixou-se num padrão progressivamente… que palavra usar ? …malsain, talvez seja a mais apropriada. Falássemos de Filologia, Latim ou Literatura, ela todo o tempo se esforçava em descobrir  maneiras sutis de me diminuir, e mesmo humilhar. Dos assuntos impessoais, passou a imiscuir-se na minha vida íntima. Perguntava-me de namoradas e experiências sexuais. Comprazia-se em desmontar-me  as mentiras, parecia ler-me na alma o pouco trato com o tema. Como por um fio invisível, eu me sentia preso na excitação que alimentava tais implicâncias. E ela tecia feliz a teia em que  julgava me enredar.

Eu me deixava envolver, querendo descobrir até onde iríamos. Questionei-lhe o casamento. Ela me mostrou um retrato do marido. Era um advogado, ligado a certo político influente no governo federal. O que mais me impressionou no époux foi o  anel de grau que brilhava no dedo.  Contou-me detalhes da intensa vida social que tinham. Recepções  com  políticos, militares e mesmo artistas. Falou de um jantar que oferecera em sua casa para 15 pessoas, à luz de velas, discorrendo sobre confusos estados de alma que a arrebataram naquela noite. Como me parecia que era mais um lance no jogo e  que o intuito dela era  contrastar a elegância destes eventos com a provável pequenez do meu cotidiano, não hesitei em atacá-la. Disse com desdém que estava inventando tudo aquilo ou simplesmente reproduzindo cenas de algum romance que havia lido. Para meu espanto, ela empalideceu, fitou-me alguns segundos constrangida, perplexa.. Pegou a bolsa e os livros e disse com voz trêmula: “Seu mal é que você nunca leu Virgínia Woolf. Não entende nada da vida!” E foi-se embora.

Nos dias subsequentes mostrou-se arredia. Não era a primeira vez que a via deprimida, e sempre me intrigaram aquelas súbitas mudanças de humor. Feições amarguradas, olhar baixo, disperso, postura contraída. A diferença é que desta vez eu tinha uma pista. Pouco adiantou.  Tentei restabelecer o padrão habitual de nossas disputas. Ela  se encastelou em  Virgínia Woolf. Falava de uma certa Mrs. Ramsay e de um farol numa ilha. Pedi que me contasse a história do livro. Ela tentou, também me esforcei em vislumbrar algum nexo no que  ouvia. Só uma idéia ficou clara: morte.

Enquanto ela falava de “estados mágicos de percepção” e outras sensações igualmente vagas,  eu especulava sobre o que realmente lhe passava na alma. Seriam verdadeiras tais mudanças de ânimo ou eram apenas variações mais sofisticadas de que se valia  no jogo sutil que disputávamos?  Excitava-me com tais dúvidas e deixava soltas minhas fantasias eróticas, sem me deter na questão se era ou não real o sofrimento que  ela deixava transparecer.

O resultado é que se estabelecia permanentemente uma tensão submersa entre nós. Discutíamos  a qualquer pretexto ou sem pretexto nenhum. Ela se comprazia em mostrar-se ofendida,  acusando-me de insensível e estúpido. Certa vez largou-me falando sozinho num banco da praça.

Fui sendo tomado pela idéia de que no fundo esperava  um  gesto de ousadia. Como homem, me cabia a iniciativa. Imaginei mil formas de abordagem. Todas ridículas. Estar com ela passou a ser um martírio. Cada brincadeira, cada sorriso, cada palavra que me dirigia era como uma alfinetada. Todas carregavam  o mesmo oculto escárnio: que homem é você que não toma o que lhe é oferecido ?

Amargurei-me por semanas. Quando afinal,  num recanto discreto dos jardins do museu, beijei-a à força, enquanto ela me arranhava, defendendo-se,  foi muito mais impulsionado pela pressão insuportável da angústia do que pelo real desejo de tocá-la. Ela se afastou depressa e eu me sentei exausto. Passei o lenço no rosto. Um filete quase invisível de sangue desenhou-se no tecido, como um presságio sombrio.

Rompeu de todo relações comigo. Se cruzava com ela, seus olhos dardejavam mágoas que faziam sentir-me culpado. Será que  havia ultrapassado os limites ?  Ao mesmo tempo, registrei, certa angústia difusa que vinha me atormentando nos últimos tempos dissipou-se.

Passaram as férias e um dia, sem mais nem menos, ela se aproximou: “Se você me pedir desculpas, esqueço o que aconteceu”. Tive ímpetos de dizer que ela me devia mais desculpas que eu a ela, afinal tudo acontecera por causa de suas provocações. Não tivesse me tratado como um brinquedinho…

Ela me olhava, esperando a resposta. Convenci-me de que a amava, e a súbita descoberta bloqueou-me a respiração. Desculpei-me simplesmente,  com voz débil, quase ofegante.  E retomamos nossos intermináveis  e delirantes colóquios, entremeados de aulas insípidas. Notei nela uma única mudança. O olhar. Continuava desdenhoso e superior, mas deixava surpreender às vezes um brilho que me envolvia, me desnorteava, e assustava. O jogo se elevava a um novo patamar. Excitava-me especular qual seria  o  próximo lance. A propos, a angústia difusa voltou.

Antes de chegar ao ponto em que os acontecimentos se precipitaram, devo narrar um fato que parecerá à primeira vista insignificante mas que foi decisivo: rompi com a esquerda.  Sem família na cidade e com dinheiro na estrita medida, eu dependia do restaurante da faculdade para almoçar e jantar. A pretexto de um aumento no preço da refeição, o recém eleito presidente do diretório acadêmico resolveu “levantar as massas”. No jantar, foi formado um piquete diante do restaurante e a liderança nos exortou a responder ao arbítrio da direção eximindo-nos de comer. Quem morava com a família ou tinha dinheiro foi para  outro lugar.  Eu e vários colegas menos afortunados ficamos heroicamente por ali, esperando algum acontecimento que nos livrasse da fome. Mas nenhum de nós teve coragem de questionar a palavra de ordem, receoso de ser tomado por reacionário. As lideranças foram inflexíveis. Mantiveram o piquete até que as grandes portas de aço do restaurante fossem baixadas. Aí comemoraram mais uma vitória sobre a ditadura e foram para suas casas jantar. Alguém comentou com despeito que o presidente do diretório era filho de um figurão e morava num luxuoso edifício à beira-mar.  A massa dispersou tristemente. Naquela noite, sonhei que estava num restaurante de luxo e havia um grande pato assado sobre a mesa. Mas só me era servido alface picado. Eu comia molhes e molhes da verdura sem conseguir aplacar a fome. De manhã, devolvi o livro do Malraux à biblioteca, sem nenhum drama de consciência. A importância de tal acontecimento foi ter me deixado o espírito vazio. Acabaram-se os devaneios terroristas. Eu estava pronto para mergulhar no universo que, mais adiante, me perderia.

Numa tarde chuvosa, Virgínia anunciou uma grande novidade. Não quis contá-la no intervalo das aulas. No final da tarde, fomos dar um passeio na praia. O mar estava calmo e caia uma leve garoa. Ela disse que iria mudar-se para Brasília. O tal político de quem o marido era assessor tinha sido nomeado para um alto cargo no governo. Mostrou-se excitada com a perspectiva. Falou na casa de luxo que habitaria, nos jantares nas embaixadas, recepções nos palácios, enfim, na visão dela,  estava de partida para  o grand monde. Ouvi calado. Ela interpretou meu silêncio como amargura. Perguntou envaidecida se a notícia me fazia sofrer. Escarneci. Ficava feliz em vê-la tão animada, embora não entendesse como alguém podia achar maravilhoso morar em Brasília, cercar-se de políticos corruptos, militares ignorantes e diplomatas afetados. Ela não acusou o golpe. Sorriu complacente, como se dissesse: é compreensível que você tente disfarçar a falta insuportável que vou fazer na sua vida. Afirmou que também sofria por ter de abandonar… o curso. Quanto a mim, prometeu que escreveria sempre que pudesse.

Dormi mal naquela noite, de raiva. Ela continuava me tratando como um brinquedo, um capiau apaixonado com quem se divertia. E eu não conseguia mudar o jogo. Imaginei coisas desagradáveis para jogar-lhe na cara nos dias seguintes. Mas dei-me conta de que, quanto mais a ofendesse, mais ela se deleitaria, consciente de me fazer sofrer com o afastamento. Tentei manter-me natural e até indiferente.  Chegava a evitá-la. Mas ela não se deixava enganar. Esperava-me nos intervalos, procurava-me no bar, sempre disfarçando a satisfação com o que imaginava que me ia na alma. Às vezes, exibia uma expressão tão doce que, se eu não a conhecesse há tantos meses, confundiria com lampejos de ternura.

Afinal chegou o dia da despedida. Era a última prova e ela partiria na semana seguinte. Eu havia conseguido preservar razoavelmente a dignidade. Por mais que ela me provocasse naquelas últimas semanas, não lhe dei muitas chances de ridicularizar meu pretenso amor impossível, o que a deixou frustrada. Não conseguiu esconder a irritação que a consumia naquela tarde. Segurei o quanto pude a conversa com os assuntos acadêmicos, sem deixar que resvalasse para o terreno que ela queria.

Quando percebi que não conseguiria mais resistir e ela tomaria as rédeas, declarei que tinha outro compromisso e precisava ir embora. Ela não deixou que a surpresa lhe tirasse a iniciativa. Olhou-me alguns segundos e reagiu com uma sonora gargalhada: “não precisa fugir das emoções. Sei o que você está sentindo”. Aquilo me irritou tanto que por pouco não lhe dei um tapa. Esforcei-me para ser o mais grosseiro que pudesse. Ela ouviu meus insultos sem se alterar. Quando respondeu, me deixou inteiramente confuso: “É justo. Você merece uma compensação”.  Não atinei com o que queria dizer. Ela continuou: “Há semanas procuro um presente para você. Como nada me pareceu adequado, deixei para lá. Só neste instante me veio a iluminacão e descobri o que tem que ser.”

Não pude mais fingir indiferença, pois ela havia dito a última frase com uma vibração que me retesou os músculos do rosto. “Que?”, tive de perguntar com voz sumida. “A compensação”, respondeu, como quem conta piada, senhora absoluta do jogo.  Não ri. Então ficamos em silêncio. Segundos, minutos, não sei.  Ainda me parece que foram horas. Palavras terão sido ditas em seguida mas se perderam. Permaneceram os olhos dela, que me tragaram. Quem propôs fui eu, mas como dando voz às ordens dela.

Nosso encontro foi no acanhado quarto que eu alugava. À tarde,  a senhoria nunca estava em casa, o que nos foi conveniente.  Devo confessar que fracassei na cama. Seria fácil encontrar explicações. Atordoado, não tive cabeça para buscá-las, em especial porque a reação de Virgínia me desconcertou. Mortificado pela vergonha, imaginei que ela estivesse assistindo à coroação gloriosa de meses e meses de esforços, que se sentia vencedora em toda a linha,  calcando-me definitivamente a seus pés. Mas para minha surpresa, mostrou-se despida de toda arrogância. Nunca me pareceu tão natural, descontraída, à vontade. Contou-me como se sentira num passeio que fizera anos atrás a uma cidadezinha do interior, em companhia dos pais, descrevendo as cores dos pastos e das florestas, a intensidade suave da brisa e as nuvens arroseadas que se formaram no horizonte, relacionando tudo isso ao indefinido mas intenso estado de alma que a levou a tirar os sapatos – enquanto um pássaro que ela desconhecia piava tristemente – e mergulhar os pés num riacho,  provocando palavras de censura da mãe que a deixaram zangada e com raiva o resto do dia. Emocionava-se com a história,  enquanto fumava alguns cigarros. Não fez qualquer comentário sobre meu “fracasso”. Depois vestiu-se e, ao se despedir, me beijou a boca. Disse com verdade: “jamais esquecerei  de você !”

Depois que saiu, deixei-me ficar na cama, imóvel,  a cabeça vazia, como quem acorda e não consegue lembrar nada de um sonho que no entanto ainda lhe tensiona todos os nervos. Na minha cruel avaliação, tinha sido exatamente assim: um sonho que se desfez, e que seria  impossível recuperar. Minha derrota. Preferi estar morto.

A senhoria bateu no quarto à uma da tarde do dia seguinte, preocupada comigo. Justifiquei-me com a gripe. Preparou-me chá. Tranqüilizei-a: estava bem. Ela saiu para trabalhar. Eu não tinha prova naquele dia. Fiquei no quarto olhando pela janela o sol subir lentamente pela parede nua do prédio vizinho, deixando-a afinal diluída em sombras, quando então chorei, comovido com minha própria infelicidade.

À noite fui jantar no restaurante da faculdade. Quando voltei para casa, estava mais aliviado. A conhecida angústia difusa mais uma vez havia desaparecido. Concluí que tinha sido melhor assim, idéia aparentada com o adágio couper le mal à la racine. Dormi instantaneamente mas acordei de madrugada e não mais conciliei o sono até amanhecer.

Amanhecer de um dia que se arrastou sombrio e funesto, seguido de outro igualmente mórbido, como eu antevia que seriam todos os dias seguintes da minha vida.

No entanto: someone had blundered. Ainda lembro das palavras, embora nunca tenha ido ao dicionário pesquisar com precisão o que significavam. Verso de um poeta inglês – ela disse o nome mas esqueci  – que Virgínia Woolf usou num romance, esclareceu, sorridente. Foi assim que reapareceu inesperadamente dois dias depois. “Adiei a viagem…por um dia. Precisávamos conversar, não é verdade ?”

Minhas idéias foram varridas por um turbilhão. Ela observou que meu olhar era insano, o que me arrancou uma gargalhada, porque coincidentemente naquele momento eu só tivera lucidez para constatar, mais uma vez, o brilho extravagante dos olhos dela, que me inquietavam.  Não  disse nada, para evitar que nossas mútuas e contraditórias percepções desembocassem numa discussão. Preocupavam-me outras urgências, o que, vendo de hoje, foi um erro.

Superei a inibição e posso assegurar que desfrutamos uma tarde de amor que, naquele momento, me julguei no direito de classificar como superbe. Senti-me feliz, estado que, dei-me conta,  desconhecia. No silêncio dos momentos que sucederam o gozo, enquanto ela se deixava estar docemente largada, olhos fechados, lábios entreabertos, quase em sorriso, compus mentalmente frases de amor, as quais se desfizeram antes de enunciadas quando, emergindo do torpor,  ela reassumiu a postura arrogante. Ergueu a cabeça, olhou-me e disse, quase rindo: “Você fica me devendo o dia mais feliz da sua vida !” Irritei-me: “E você, me deve o que ? “ Não respondeu. Levantou-se e foi ao banheiro. Fiquei remoendo o comentário infeliz. Quando voltou, disse: “Não devo nada. O que aconteceu, aconteceu só para você. Para mim, é a felicidade de quem dá um presente: fica feliz pelo outro”

Esperei que ela se vestisse  e perguntei: “Quer dizer que não sentiu nada ? “ Ela, condescendente: “Não acha que já ganhou muito ? “ E foi para a porta,  sem me beijar. “Mando um cartão com o endereço. Escreva.” Foi embora.  Nem tive tempo de pegar a roupa para tentar detê-la.

Na minha frustração, construí a imagem de que ela ria no elevador, pensando: “Pelo menos botei o brinquedinho para funcionar”. Exasperei-me. Toda a ternura que há alguns minutos amolecia-me o coração se transformou em rancor. Eu era um bobo!  Mesmo depois de ter  chegado à conclusão que o único interesse dela era se divertir às minhas custas, me deixara enganar mais uma vez. A lembrança da viagem deixou-me ainda mais furioso, porque não teria outras oportunidades de vingança, o que vem provar que na vida seguimos de olhos vendados, sem idéia do que há à frente.

Uma semana depois, também viajei, para passar o Natal com a família. Acharam-me abatido. Justifiquei-me com os estudos. Meu pai disse que agora eu poderia descansar e me divertir, ao que minha mãe, com alguma coquetterie,  lembrou  que havia uma pessoa que não se cansava de perguntar por mim e instou-me a adivinhar quem era. Recusei a brincadeira. Os joguinhos familiares de sempre nunca me pareceram tão execráveis. “Voltou mudado”, comentaram.

Naquela mesma tarde, a “incansável perguntadora” apareceu. Era uma ex-colega por quem me apaixonara antes de entrar para a faculdade e que me preterira por um sujeito que estava fazendo concurso para o Banco do Brasil –  ser funcionário do Banco do Brasil era o sonho dourado de boa parte dos jovens naquela época. Nem ele passou nem o namoro foi adiante, de forma que ela se encontrava livre e desimpedida. Embora seja hoje minha esposa, a quem muito prezo e respeito, não posso evitar o comentário de que, para ela, retornei  num momento justamente a calhar.

Na noite de Natal, me deu de presente um romance de Marques Rebello, livro que eu, como estudante de Letras, “certamente apreciaria”, recomendara o livreiro. Foi minha única leitura naquelas férias. Férias de tardes abafadas e modorrentas, de longas conversas sem assunto e mãos dadas.

Aferroado pelo rancor, esforçava-me por afastar Virgínia do pensamento. Triunfava na vigília. No sono, sua imagem se infiltrava, solerte. Foram noites de sonhos agitados, com resultados constrangedores nos lençóis. Não acreditava que escrevesse, embora todas as tardes encontrasse alguma desculpa para esperar o carteiro. Agora relembrando tais fatos e conhecendo os desdobramentos que sobrevieram,  pergunto-me se uma simples linha poderia ter alterado o que estava por vir, questão que, por sua vez, leva a outra: como eu interpretaria o que quer que fosse que ela escrevesse ? Que por sua vez levaria a uma terceira e a uma quarta e assim por diante. Como nada arreda o peso do acontecido, melhor ficar com o fato inquestionável: não veio nenhuma correspondência.

Das mãos dadas passamos aos beijos e aos apertos nos cantos escuros das pracinhas. Ambas as famílias viam com bons olhos o namoro. Por sutil pressão dos pais dela, com a aquiescência dos meus e minha falta de argumentos em contrário, ficamos noivos pouco antes de terminarem as férias. O casamento no fim do ano, coincidindo com minha formatura, seria o encadeamento lógico, inéluctable. Ficaram todos felizes. Quanto a mim, senti-me… confortável, seguro, como quem veste um casaco grosso numa manhã fria. E era uma resposta à altura da carta que não veio.

A senhoria não estava quando voltei ao meu quarto alugado. Tinha ido visitar um irmão doente no Sul. A faxineira cuidava da casa. Como não simpatizasse comigo, disse-me apenas as palavras essenciais, razão pela qual só 20 dias depois, quando a patroa voltou, fiquei sabendo que durante as férias chegara correspondência. A prestimosa senhora contou-me que, por pouco, não se extraviara, porque  o número do prédio estava errado. Por sorte, ela passava pela portaria quando o carteiro fazia a entrega e o ouvira perguntar ao porteiro, o qual, “idiota como ele só”, respondera que não morava ninguém com meu nome no prédio.

La lettre consistia na foto do palácio da Alvorada, acompanhada deste lacônico recado:  “Perdi o endereço da sua casa na mudança. Não sei se você vai voltar para este apartamento. De qualquer forma, cumpro o prometido “.  Seguia-se o endereço dela. Joguei o cartão num canto, disposto a simplesmente ignorá-lo. O que não consegui. Passei o resto do dia ruminando a precisa avaliação daquelas palavras. Irritava-me, primeiro, o descuido. Perdera o endereço que eu mesmo anotara para ela. Em seguida, errara o número do prédio ao qual nem tinha certeza que eu voltaria, quando das duas vezes em que esteve lá tinha ido sozinha, para não chamar a atenção. Logo, sabia muito bem o número ( não se esquecem essas coisas com tanta facilidade.)  E depois, a secura, a aridez. Fosse uma ordem para um criado, não seria tão impessoal. Um criadinho, era isso. Via-me como um criadinho. Agora era meu dever redigir cartas simpáticas e submissas para distraí-la do tédio brasiliense. E este seria o melhor presente que eu poderia receber, a felicidade que me era concedida. Revoltei-me.  Jamais lhe daria este prazer, jamais receberia uma carta da minha lavra. Mesmo porque eu agora estava noivo, e me sentia satisfeito nesta condição. Se alguma notícia ainda lhe desse, seria que  havia perdido seu lugar. Nem isso eu lhe diria, quanto mais esquecida se sentisse, melhor. Orgulhei-me da minha firmeza.

Depois mudei de idéia. Pensei que desta forma ela poderia imaginar que eu não tinha recebido seu cartão e atribuir meu silêncio à impossibilidade de encontrá-la. Para que meu desprezo ficasse claro, ela tinha que saber que eu recebera o endereço e assim mesmo não escrevia. E mais, que eu estava noivo, que ela havia sido preterida. Fiquei a ruminar o que escrever. “Recebi seu cartão. Obrigado.” Ou:  “Acuso recebimento do cartão. Grato.” Ou talvez, com fina ironia: “Recebi o cartão. Quando tiver tempo, dou mais notícias”, e nunca mais dizer nada. Melhor ainda: “Fiquei noivo. Desculpe-me. Adeus”. Mas passados dois dias ainda não havia me resolvido. Nada me parecia adequado. Arrumando-me para a volta às aulas, enquanto rememorava os momentos que passamos naquele quarto, concluí que a primeira alternativa era a correta:  o silêncio seria a resposta mais cruel.

Foi quando tudo mudou: conheci Laclos.  A professora disse que naquele semestre estudaríamos um romance setecentista, do gênero epistolar, e que não precisávamos comprar o livro. Traduziríamos apenas algumas cartas selecionadas, o suficiente para analisar o estilo. Desaconselhou a leitura do texto completo. Considerava-o enfadonho e degradante.

As cartas que distribuiu, reproduzidas em mimeógrafo, descobri depois, eram as menos significativas. Das melhores, vinham apenas parágrafos isolados.  Mesmo assim me deslumbrei desde a primeira linha. Ainda hoje lembro de cor trechos inteiros. Vos ordres sont charmants; votre façon de les donner est plus aimable encore; vous feriez chérir le despotisme. Ce n’est pas la première fois, comme vou savez, que je regrette de ne plus être votre esclave; et tout monstre que vous dites que je suis, je ne me rappelle jamais sans plaisir les temps où vous m’honoriez de noms plus doux…

Les liaison dangereuses, Laclos, vinha lá embaixo, em letra pequena.

Transportado para aquele universo requintado, não mais quis abandoná-lo. Peguei  o livro na biblioteca e dedicava a ele todo o tempo livre. A galanteria, os jogos de sedução e os rapapés  me fascinaram de tal forma que se poderia dizer que entrei em transe, que fui possuído por um espírito inefável, e que meus atos daí por diante deixaram de ser ditados pela consciência.

Permettez donc, Madame, que mon coeur se dévoile entièrement à vous. Il vous appartient, il est juste que vous le connaissiez.  Dizia o Vicomte de Valmont. E aquelas palavras doces anelavam-se no meu cérebro como vapores de incenso, me inebriando, transportando-me para um mundo em tudo oposto ao mesquinho dia a dia das minhas desventuras; palavras que imperceptivelmente eu ia incorporando, traduzindo, adaptando, fazendo-as finalmente correr sobre macios papéis de carta; palavras que criavam sentido para que se mantivesse uma correspondência.

Senti-me feliz por ter a quem escrever, por ter distante uma mulher a quem amar. Virgínia surpreendeu-se com a primeira carta. Em meio ao tom zombeteiro com que leu aquelas ardentes palavras não conseguiu esconder o enlevo que lhe traziam. Sorri de satisfação e cumprimentei a mim mesmo quando recebi a curta resposta. Acertara o alvo. Agora a tinha em meu poder,  assumira com perfeição o papel que,  estava certo, ela me destinava na sua fantasia. Feito personagem, eu atuaria naquele palco delirante para extasiá-la, mas, sem que ela se desse conta, senhor do texto que a aprisionaria.

Foram dias, semanas, meses em que vivi numa intensidade desconhecida, alheio ao que se passava ao meu redor. Minha noiva escreveu e respondi com um seco telegrama, evitando estender-me numa carta. Receava, deixando fluir o estado de espírito que me dominava, trair a ela com sentimentos que não faziam parte do nosso entendimento, ou, sendo contido e habitual, trair a mim mesmo, imerso que estava nas sonoridades da língua francesa ressoando permanentemente nos meus ouvidos, produzindo reverberações que ainda hoje não se dissiparam. Vous croyez, Monsieur, ou vous feignez de croire que l’amour mène au bonheur; et moi, je suis ci persuadée qu’il me rendrait malheureuse, que je voudrais n’entendre jamais prononcer son nom. Il me semble  que d’en parler seulement , altère la tranquillité ; e c’est autant par goût que par devoir, que je vous prie de vouloir bien garder le silence sur ce point.

Não. Cartas e o que nelas era próprio de se dizer cabiam apenas ao confuso trato que  mantínhamos, Virgínia e eu. Escrevi de início várias, com freqüência de um, dois dias, o que assustou minha correspondente. Ciosa de si, jamais poria em dúvida a autenticidade daqueles sentimentos febris, aceitando-os como a justa e natural homenagem que lhe era devida. Mas pediu-me que me contivesse, que atentasse para as conveniências. Sabia que me custaria sofrimento, entendia que a correspondência era o recurso desesperado de que me valia para suportar sua ausência mas, apelava para meu bom senso, tal quantidade de cartas acabaria por levantar suspeitas no époux (até hoje não consigo evitar o tratamento despeitado que lhe dispensava), apesar do cuidado que ela tinha de esconde-las meticulosamente dele, mesmo sabendo-o, por princípio, incapaz de ler correspondência alheia. Relembrando este detalhe, ainda me surpreende tamanha ingenuidade: como o senhor vê,  o marido lhe era de todo estranho.

Fiz-lhe a vontade. Estabeleci uma semana de intervalo. Achou insuficiente. Na carta seguinte, disse que começava a se assustar, não só  com a possibilidade de sermos descobertos mas com a intensidade dos sentimentos de que era alvo. Temia que eu tivesse levado demasiadamente a sério o que fora “apenas um momento de desvario “,  do qual devíamos guardar doce memória, jamais acreditar que pudesse ter desdobramentos. Pediu-me que me contivesse, que aceitasse  “a sincera amizade” que me dedicava, que não sonhasse demasiado com o que não estava ao meu alcance.

Exultei com esta carta. Sem saber – e como saber, ignorante que era da Literatura Francesa ? – ela se colocava na posição perfeita para meu jogo, porque assumia sentimentos e posturas em clara simetria com as da Présidente de Tourvel, a personagem do livro de Laclos que é submetida  à mais fina e arrebatadora campanha de sedução jamais relatada. E a sutil mistura que acontecia na minha cabeça entre personagens do livro e  realidade se completou.

Eu me identificava ao mesmo tempo  com o apaixonado e ingênuo Danceny  e com o maligno Visconde sedutor, e atribuía a Virgínia a mesma ambigüidade. Era ao mesmo tempo a suave e frágil senhora a quem eu tentava derrubar todas as resistências e a pérfida  Marquise de Merteuil.

Quando me pedia que a esquecesse, que procurasse o consolo de outras mulheres, havia tantas ! (nada lhe disse do meu noivado),  eu adivinhava que o objetivo era exatamente o contrário. Queria-me aprisionado a sua memória, desconsolado e desesperado, porque – eu já aprendera com Marquise:  rien ne m`amuse comme un désespoir amoureux. Il m`appellerait perfide, et ce mot de perfide m`a toujours fait plaisir; c`est, après celui de cruelle, le plus doux à l`oreille d`une femme.  No meu delírio eu a ouvia distintamente dizendo estas palavras (ela que jamais pronunciou corretamente uma palavra em Francês)  com aquele sorriso zombeteiro nos lábios.

Despeitado, eu partia para o contra-ataque. Valia-me do mestre – Laclos foi um brilhante militar – e imaginava as mais rebuscadas estratégias para dominar o inimigo, fazendo-a crer que era ela a senhora da posição. Quanto mais ousados e criativos meus movimentos, mais segura ela se sentia, deixando fluir aquela fina crueldade que, eu já sabia,  tanto encanta as mulheres. Falava-me do brilho da vida que levava, sem perceber que isto se condensava na minha mente como a concretização do mundo galante em que me inspirava. Quanto mais distante se punha mais próxima estava das minhas personagens. Foram meses de puro deleite. Não fosse eu hoje sabedor das funestas conseqüências que viriam, diria que experimentamos os dias mais felizes das nossas vidas.

Quando esta felicidade, de modo quase imperceptível,  começou a se esvair nas cartas dela, senti-me desamparado e inseguro.  Não mais se comprazia com meus longos parágrafos de exaltação, de submissão e  de langor, muitas vezes nem mesmo os registrava. Tornara-se fria, alheia. Perguntei o que estava acontecendo. Ela se retraiu. Passou algumas semanas sem responder. Inquietei-me. Teria se enfadado do jogo ?  Ou perdera eu, num descuido,  minhas personagens ?

Busquei em Valmont as mais finas palavras para tentar reverter a situação: De grâce, Madame, renouons cet entretien si melheureusement rompu ! (Por favor, amiga, reatemos nossa correspondência tão inexplicavelmente interrompida !)  Mon amour vous effraie, vous le trouvez violent, effréné !   (Meu amor a assusta,  você o acha  violento e desenfreado…)  cet entretien que je vous demande,  peut-être est-ce à moi à le redouter !    peut-être aprés, enchaîne par mes promesses, me verrai-je réduit à brûler d’un amour que je sens bien qui ne pourra s’éteindre, sans  oser même implorer votre secours ! Ah ! Madame, de grâce, n’abusez pas de votre empire ! ( As cartas que  peço, talvez devesse eu ter medo delas ! talvez depois, preso a minhas promessas, me veja reduzido a arder  de um amor que, sinto bem, não poderá extinguir-se, sem poder nem mesmo implorar sua ajuda!  Por favor, amiga, não abuse do poder de que dispõe !). Apesar da eloquência, ela não respondeu. Na minha ingenuidade, julguei que Laclos perdera a força.

Aproximavam-se as férias de meio de ano. Recebi a notícia de que minha noiva viria me visitar, acompanhada dos pais.  Recepcionei a família no meu quarto – fizeram questão de conhecê-lo. Quando tomávamos, cerimoniosamente, um refresco que a senhoria, por conta dela,  mandara servir, experimentei a nítida sensação de ter enlouquecido ao ver Virgínia entrar no quarto, caminhar  com passos decididos e, só quando já estava junto a mim,  dar-se conta de que havia outras pessoas no aposento. Ficamos, eu, minha noiva, o pai e a mãe dela, e Virgínia, todos perplexos.

Coube à senhoria, que entrou em seguida sem nada perceber, desatar o nó, perguntando, sorridente: “Também é da família ?”, palavras que tiveram o dom de destravar os lábios de Virgínia: “Acabei de chegar de viagem… Não sabia…” Só então me levantei, atordoado, e fiz uma apresentação tosca: “Virgínia… uma colega…” O pai e a mãe sorriram mas minha noiva manteve-se assustadoramente séria. Não tive coragem de dizer outra coisa que: “Minha noiva…” Virgínia, que parecia horrivelmente abatida – agora eu  tinha condições de notar – olhou para a outra com uma tristeza que me provocou arrepios. Em seguida, parecendo retomar o controle de si própria,  forçou um sorriso e, com calma inimaginável, amansou a tempestade: “ Desculpe vir assim tão intempestivamente a tua casa. Acontece que vou passar apenas algumas horas na cidade e tinha que devolver teu livro. Não me perdoaria se não o fizesse…”

Tirou da bolsa um livro e me pôs nas mãos:  “Orlando, a biography – Virginia Woolf” . Olhei a capa, apalermado, enquanto ela, com a maior elegância, aproximou-se, beijou-me discretamente o rosto, dizendo: “Bom te rever. Agora preciso ir. Meu marido me espera lá embaixo”. Voltou-se para os outros e apertou a mão de um por um, sorrindo para minha noiva e dizendo: “Parabéns, sua noiva é linda”. E saiu. Só então tomei coragem para gaguejar alguma coisa como: “Acho que devo acompanhá-la até a porta”. Alcancei-a no elevador. Olhou-me com a mesma tristeza de antes. Eu disse: “Vamos nos ver… em outro lugar… quero me explicar…” Não respondeu. O silêncio foi tão sufocante que só não me ajoelhei a seus pés porque tive medo de alguém aparecer. Com muito esforço, completei: “Na praia… naquele lugar…” Ela entrou no elevador sem me olhar mas antes de fechar a porta disse: “Hoje não posso… Amanhã, no fim da tarde…”

Voltei ao quarto como um autômato. Os pais e a noiva me olhavam, intrigados. Sorri abobalhado por um tempo infinito. Acabei declarando: “É meio maluca. Nem me lembrava que tinha feito este empréstimo.”  A mãe  elogiou : “Honesta ela é. Fosse outra…”  Minha noiva pegou o livro. Leu o título com a clareza de um portão enferrujado. “Bom ?” Sacudi os ombros e custei a responder: “Fraquinho”.

O dia seguinte arrastou-se tão lentamente que,  muito antes do entardecer, fui para a praia. O céu estava nublado e fazia frio. Dei como certo que ela não viria. Já me preparava para ir embora quando uma figura caminhando junto à água, longe, me chamou a atenção. Era ela. Vestia um casaco comprido, cor de areia, e, mesmo de roupa,  não se incomodava em pisar na água, o que estranhei. Não parou quando me viu. Simplesmente me juntei a ela e fomos em direção aos rochedos. A princípio, nenhum de nós disse nada. Notei que estava mais abatida que na véspera, embora a tristeza tivesse dado lugar a uma expressão distante, alheia. Para quebrar o silêncio, perguntei por que havia parado de escrever. Ela respondeu que tinha imaginado me fazer uma surpresa.

“Larguei meu marido”, disse repentinamente, após alguns segundos. Meu sangue gelou. Fiquei tão perturbado que não vi uma onda que quebrava. A água me cobriu até a cintura. Ela achou graça.  Perguntei por que tinha se separado. Respondeu que eu era a única pessoa no mundo que não podia fazer tal pergunta. Tínhamos chegado aos rochedos. Ela se sentou. “Por causa das cartas?”, balbuciei. Ela me fitou. Percebi que o olhar, mais que a extravagância habitual, parecia  alucinado. “Pelo menos descobri que você vai ser um grande escritor”, ela disse. Não entendi ou fingi não entender e pedi que  explicasse. Ela não considerou a pergunta e disse que eu devia pensar num romance.  Achei que era minha obrigação desfazer o mal entendido e confessei que tinha copiado as cartas. A revelação pareceu amargurá-la mais que tudo. “De quem?”, quis saber. Respondi. Laclos nada significava para ela: “Nunca  ouvi falar.”

Começou a catar pedras no chão e a guardá-las nos bolsos do casaco. Eu quis saber por que fazia aquilo. Explicou que tinha coleção. Depois  lamentou  nada conhecer da Literatura Francesa. Ao que contrapus, tentando agradá-la, que eu também nada sabia da Literatura Inglesa. “Nunca leu Virginia Woolf”, ela comentou, com tristeza. Eu disse que iria ler o livro que tinha deixado comigo. “Nem sabe inglês”, zombou ela. Garanti que iria aprender.

Ela pediu que eu a deixasse sozinha. Recusei, precisávamos conversar. Ela observou que provavelmente eu me considerava muito esperto, mas que no fundo continuava o mesmo bobo, embora ela própria não pudesse negar que tivesse feito papel de idiota, o que não deixava de ser um fato digno da minha comemoração.  Pedi que evitasse as ironias, sabia que estava decepcionada, mas eu podia me explicar. Ela afirmou que eu não devia nenhuma explicação, que não precisava me sentir culpado, porque decepção maior tivera  com o próprio marido. Quis que me contasse mas ela insistiu que eu fosse embora, sentia necessidade de ficar sozinha, haveria outras ocasiões para conversarmos. Ainda fiz algumas tentativas mas ela se tornou ríspida e achei melhor fazer o que pedia.

Enquanto me afastava, pensei que não tinha alternativa senão romper o noivado, o que não seria nada fácil. Olhei para trás. Ela caminhava nos rochedos, abaixando-se de vez em quando para pegar pedras no chão. Foi a última imagem que guardei dela.

No dia seguinte, a professora interrompeu a prova para fazer um “triste comunicado”. Tinha acabado de saber que Virgínia se afogara  na véspera. Suspeitava-se de suicídio. Comentou a estranha coincidência com a maneira pela qual Virginia Woolf, por quem sabia-se que nossa colega tinha paixão, havia morrido. O espanto foi total. Quanto a mim, não consegui completar as questões e entreguei a prova praticamente em branco.

Cheguei em casa atordoado, talvez febril, e me tranquei no quarto. Não tinha pensamentos, só o rosto de Virgínia pairando na mente, como uma obsessão. Sei que, em algum momento, devo ter pegado no sono, porque não percebi quando abriram a porta. Acordei com uma lanterna nos olhos e um violento tapa no rosto. Levantei-me assustado e recebi socos e pontapés de todos os lados. Quando finalmente acenderam a luz, eu estava caído, com a boca sangrando. Uma voz ordenou silêncio. Mandaram que me sentasse na cadeira, queriam me fazer umas perguntas. Eram quatro homens. Não guardei as feições de nenhum. Arrisquei dizer que devia ser engano, que eu não tinha feito nada de mal. A resposta foi um soco no ouvido e um golpe de cassetete nas costelas, enquanto tapavam minha boca. Avisaram que, se eu gritasse, não sairia vivo.

Dois deles se postaram para me interrogar, enquanto os outros vasculhavam o quarto minuciosamente, arrancando as gavetas, espalhando todos os livros e rasgando o colchão. Esclareceram que estavam ali a mando do marido de Virgínia, que eu havia me metido com gente importante e iria pagar caro. Sabiam que eu tinha sido amiguinho dela e que costumávamos nos corresponder. Suspeitavam de ligações minhas com subversivos e queriam saber se havia relação entre os dois fatos. Ou seja, desconfiavam que Virgínia pudesse ter sido assassinada por alguma razão revolucionária, talvez vingança contra o marido, membro dos altos escalões da polícia política, como frisaram, o que acredito não ser novidade para o senhor.

Posso jurar que Virgínia não sabia das verdadeiras atividades do marido. Talvez tivesse tomado conhecimento recentemente e fosse essa a decepção a que se referiu. Já eu confesso que me senti aliviado com os motivos pelos quais estavam ali. Qualquer razão era menos incriminadora que as cartas.  Se  estas tivessem sido lidas, a ordem seria para me matarem.

O interrogatório se estendeu por um tempo infinito. Apesar do medo, sustentei a versão de que não tinha militância política e de que fui apenas colega de faculdade de Virgínia.  Tudo de que tratávamos, fosse em conversas ou nas cartas,  eram assuntos curriculares. Disse que não a via desde que tinha viajado para Brasília. Por sorte, eu havia destruído todas as cartas que recebera dela. Quando finalmente se convenceram de que eu era inofensivo, meu corpo estava machucado da cabeça aos pés. Saíram com a promessa de voltar, se descobrissem algum fato novo.

Sozinho, eu não ousava mexer um dedo.  Tentei ouvir  ruídos que indicassem a presença da senhoria, para pedir ajuda, mas a casa permaneceu num silêncio aterrorizante até o amanhecer. Levantei-me como pude, vesti a primeira roupa que encontrei, meti tudo que podia na mala e sai pé ante pé. Ao passar pela sala, vi a senhoria me espiando assustada do fundo do corredor. Não trocamos nenhuma palavra. Na rua, peguei um taxi e fui para a rodoviária, onde embarquei num ônibus para minha cidade. Abandonei o curso. Nunca mais voltei ao Rio de Janeiro.

O destino das cartas que mandei para Virgínia me atormentou durante anos. Se batiam na porta, ou se um desconhecido me interpelava na rua, meu coração disparava. Com isso, me tornei cada vez mais recolhido e arredio, o que meus pais e posteriormente minha mulher interpretaram como esquisitice. Nunca contei a eles, nem a ninguém, o que de fato aconteceu. Mesmo com o fim da ditadura, não mudei meus hábitos. Acostumei-me ao silêncio, que compensava com o álcool. Hoje, nem mais ele tenho por companhia. Estou doente do fígado, o que não deixa de estabelecer certa coerência com a raiz de tudo, naquela aula de Filologia: ficatum de ficu < figo.

Passados 30 anos, finalmente o mistério das cartas é desfeito. O senhor diz que as encontrou numa caixa, escondidas pela empregada doméstica do seu pai por todos esse tempo. Não deixa de ser surpreendente a fidelidade que esta senhora manteve com a primeira patroa, salvando, talvez sem saber, minha vida. Imagine se seu pai, ou mesmo sua mãe, segunda mulher dele, se entendi corretamente, as descobrissem.

No mais, não posso deixar de cumprimentá-lo pela isenção de espírito que demonstrou ao me dar conhecimento do seu achado. O senhor me pergunta pelo que deve fazer com as cartas. O único destino digno delas é o fogo. Não as quero de volta, e não apenas pela lembrança da pessoa envolvida. Abandonei definitivamente a literatura. Seja o que for que a traga de volta me repugna. Tornei-me comerciante, ao herdar a farmácia do meu sogro. Hoje me distraio com a televisão e com os filmes  que,  como é sabido, não excitam a imaginação. Estou muito bem assim. Quando  suspiro com alguma intensidade, sinto dor no peito, resultado da costela fraturada naquele espancamento. Que seja meu derradeiro vínculo com o passado!

Na esperança de ter satisfeito sua curiosidade, despeço-me, atenciosamente,