Marcílio Moraes faz leitor se perder na floresta misteriosa de seu policial
Renata Pallotini
O imemorial desejo de conhecer a verdade está por trás de todas as tentativas, menores ou maiores, do romance policial, de crime, de mistério, esse subgênero tantas vezes menosprezado pela crítica e tantas vezes amado pelo leitor.
O problema é que a verdade foge, escapa por entre os dedos, peixe do rio de Heráclito. Aliás, não será por outra razão que Marcílio Moraes abre seu romance “O Crime da Gávea” por uma citação do filósofo grego.
Acontece que todo bom romance de mistério – e a obra de Marcílio Moraes é um exemplo disso – começa por explorar o mistério que há no Homem: esse que verdadeiramente nos interessa, conjunto de características contraditórias, vivo conflito interno permanente. O Homem não é bom nem mau, não é inocente nem culpado; o Homem não é; pode ter sido, pode vir a ser. Tem em si todas as potências. É possível que, se não cometeu o crime, quisesse cometê-lo; é possível que, se inocente, poderia ser culpado, fossem outras as circunstâncias.
“O Crime da Gávea”, no entanto, não é apenas uma indagação filosófica; começa por ser uma boa história, o que é indispensável, no gênero. A morte de Fabiana, a vítima protagonista, já ocorreu quando abordamos o livro; à maneira dos dramas analíticos, a obra de Marcílio Moraes é um romance analítico: o fundamental já aconteceu, trata-se agora de pesquisa as razões, a motivação, as conseqüências do ato criminoso praticado. Essa pesquisa é o que nos move através das quase duzentas páginas da obra, levando-nos às ruas do bairro, aos botecos de esquina e sua fauna peculiar, ao morro e seus perigos, aos escaninhos da vida familiar e, quase ao final, à misteriosa Pedra, onde o clímax se impõe.
Não convém, como é natural numa obra desse tipo, adiantar as conclusões; em todo o caso o que nos toma por completo a adesão, durante a caminhada, é a facilidade com que o autor desenha personagens. Compreende-se. Vindo de uma atividade de cunho dramático, onde a criação de personagens é, talvez, a chave-mestra. Marcílio se encontra à vontade nesse trabalho. Através das ações, mais que da descrição física ou moral, seus personagens se definem.
Por outro lado, a atenção que se deve dar sempre, aos detalhes, no romance policial, está, aqui, presente. Como dizia Tchecov, se um revólver aparece em cena é porque alguém vai morrer. As minúcias irrelevantes ou de qualquer modo, distintas em outro tipo de trabalho literário, aqui não podem falhar. Trata-se de uma tarefa de continuidade, semelhante àquela que ocorre nas películas cinematográficas. No cinema, (como na TV) o cuidado com a continuidade é fundamental. No romance de Marcílio Moraes isso igualmente acontece, atando cuidadosamente pistas e contra-pistas, indícios e negações, de modo a fazer – e é isso exatamente o que o autor quer – com que o leitor gostosamente se perca na floresta misteriosa do texto.
“O Crime da Gávea” é, inclusive, passível de segundas leituras, coisa que quase nunca acontece nos romances de seu gênero, narrativas nas quais a simples descoberta do nome do culpado já faz relegar toda a obra no esquecimento. Aqui, como em Simenon (o que, para mim pessoalmente, é dizer muito), o texto vale por si; fica-se sonhando com a adaptação cinematográfica, com a imagem concreta, com o desenvolvimento da obra. Ou seja: há um desejo de voltar a ela, o que, vale, em si, por uma consagração.