Da máquina de escrever à gravação, a história de como é feita Roque Santeiro – a mais bem-sucedida novela já aparecida no vídeo
Mesmo as melhores novelas, aquelas que acertam em cheio na preferência do público, não têm como se desvencilhar do desagradável fenômeno da “barriga”. Os especialistas em televisão chamam de barriga a curva descendente nos índices de audiência que costuma manifestar-se no meio da novela, quando o público já conhece os personagens e a trama básica e se permite perder alguns capítulos. Somente no final da novela, quando os capítulos são realmente decisivos, a audiência torna a subir. Essa lei da lógica televisiva valeu até Roque Santeiro, a novela da Rede Globo que já na primeira semana chegou a 67% da audiência nacional, no primeiro mês de exibição passou para 72%, no segundo saltou para 75% e, no mês passado, segundo dados do Ibope, rondava o patamar recorde de 80% da audiência, somando 60 milhões de espectadores em todo o país.
O espanto é que esses índices crescentes – que garantem à novela a audiência média de 74% – aconteceram antes da saraivada de aventuras, encontros e desencontros que o atual autor de Roque Santeiro, Aguinaldo Silva, 41 anos, imaginou para enfrentar a temível barriga. Essas aventuras irão ao ar nesta semana, no capítulo 87, de quarta-feira. Em primeiro lugar, padre Albano (Cláudio Cavalcanti) fará soar o sino da igreja para reunir o povo de Asa Branca na praça principal, com o objetivo de contar que Roque (José Wilker) está vivo e que o mito não passa de uma farsa. Depois, quando Albano está prestes a fazer a revelação, o Beato Salu (Nelson Dantas) ressuscita e o povo atribui o milagre a Roque Santeiro. “O mito é mais forte que a verdade”, constata padre Hipólito (Paulo Gracindo). As aventuras não param aí: até o sábado, a bela Ninon (Clláudia Raia) irá descobrir que o delegado Feijó (Maurício do Valle) é o Lobisomem e Mocinha (Lucinha Lins) terá seu primeiro encontro com Roque.
Gravidez Misteriosa – “Nosso problema é imaginar tramas paralelas, que contribuam para o desenvolvimento do enredo central, que envolve Roque, a viúva Porcina, Sinhozinho Malta e a cidade de Asa Branca”, diz Aguinaldo Silva, que substituiu o autor da novela, o veterano Dias Gomes, a partir do capítulo 41. É da máquina de escrever de Aguinaldo Silva, instalada no escritório de uma ampla casa no bairro de São Conrado, no Rio de Janeiro, que brotam os ingredientes que fazem o sucesso de Roque Santeiro. Agora, por exemplo, o escritor está às voltas com o capítulo 119, burilando o romance entre a mulher de Zé das Medalhas (Armando Bogus), Lulu (Cássia Kiss), e o escroque Ronaldo (Othon Bastos) e cuidando da misteriosa gravidez de Marilda Mathias (Elisângela). Correrão muitos capítulos até que se descubra se Sinhozinho Malta (Lima Duarte) ou Roberto Mathias (Fábio Júnior) é o pai da criança.
A notável eficácia de Roque Santeiro, no entanto, não pode ser atribuída apenas à criatividade de Aguinaldo Silva ou Dias Gomes, ainda que sejam eles os responsáveis por um enredo enxuto, em que todas as ações são imprescindíveis para o andamento da novela. Roque é, antes de mais nada, a conjugação meio mágica do acaso com a máquina de produções da Rede Globo e o talento de uma série de artistas e técnicos que aparecem na frente e atrás das câmeras. Desde a autoria, a novela é um produto híbrido, que passa por centenas de mãos antes de chegar ao vídeo. Só no capítulo 87, o desta quarta-feira, por exemplo, 800 pessoas estiveram envolvidas, formando uma cadeia que ia da estudante Zailda Menezes, 19 anos, uma figurante anônima, à superestrela Regina Duarte, num dos melhores desempenhos de sua carreira.
A autoria de Roque Santeiro é coletiva em dois aspectos. No primeiro, por ter sido Dias Gomes, 62 anos, quem a concebeu há uma década, adaptando para o vídeo a sua peça O Berço do Herói. Em 1975, o então ministro Armando Falcão, da Justiça, Proibiu que a novela fosse ao ar – para hoje acompanhá-la assiduamente. Com a Nova República, Roque Santeiro foi ressuscitada pela Globo, mas Dias Gomes, alegando cansaço, se recusou a completá-la. Partindo do argumento criado pelo dramaturgo, Aguinaldo Silva recebeu a incumbência de escrever as partes central e final da história. No começo do trabalho de Aguinaldo Silva, Dias Gomes ainda acompanhava o destino dos personagens, através de reuniões quinzenais com o autor. Gradativamente, porém, Gomes foi se afastando: passou um mês de férias no exterior e não se interessou mais pelo enredo.
Advogados do diabo – Mesmo com o poder de vida e morte sobre os personagens, Silva também não escreve a novela sozinho. Ele conta com a ajuda de três auxiliares. O dramaturgo Marcílio Morais, 41 anos, e o roteirista Joaquim de Assis, 42 anos, e discutem todos os capítulos que Silva escreve, enquanto a pesquisadora Lilian Garcia, 26 anos, fornece os elementos de realidade que dão carne à ficção que a trinca de autores imagina. “Funcionamos como advogados do diabo, fazendo críticas e sugestões sobre as cenas que Aguinaldo escreve”, conta Marcílio Morais. Silva pode acatar ou não as críticas, mas as considera proveitosas. “O autor de novelas ficava muito isolado, sem contar com opiniões diferentes na hora em que escrevia”, diz.
Foi de Morais e Joaquim de Assis a idéia de ressuscitar o Beato Salu nesta quarta-feira, cabendo a Silva desenvolver a atuação. O autor então concentrou no mesmo capítulo a vontade de padre Albano revelar que Roque está vivo e a exibição de algumas cenas do filme sobre Roque Santeiro num cinema de Asa Branca. Durante a exibição do filme, o cinema pega fogo e convergem para a praça da cidadezinha três multidões: a que ouve o sino tocado pelo padre, a que foge do cinema e a que carrega o Beato Salu ressuscitado. O Beato ressuscita pelas artes de um capanga de Sinhozinho Malta, Terêncio (Waldir Santana), que tenta matá-lo com um choque elétrico. Lílian Garcia fez pesquisas para averiguar como se comporta um paciente em coma, como o Beato. Descobriu que jamais alguém sai do estado de coma com um choque elétrico, mas Aguinaldo Silva achou o truque tão bom que o manteve.
O capítulo 87 saiu pronto da casa de Aguinaldo Silva para a sala de Eduardo Figueira, um carioca de 28 anos encarregado da produção executiva de Roque Santeiro. Ali, no 1º andar do edifício da Globo no bairro carioca do Jardim Botânico, Figueira constatou que o capítulo iria exigir uma produção trabalhosa: 500 figurantes, gravações noturnas, um cinema e roupas de gala para os personagens que compareceram à projeção do filme sobre a vida de Roque Santeiro em Asa Branca.
“Quanto mais confusão, melhor”, entusiasmou-se o produtor. Na medida em que recebe os capítulos, a um ritmo de seis por semana, Figueira divide as cenas segundo as locações, cenários, figurinos e atores que deverão estar presentes em cada gravação. Com esses dados, ele alimenta um computador, que fornece listagens ordenando as gravações. Não se grava um capítulo depois do outro, mas em bloco de seis, aproveitando os estúdios e cenários.
Fachada pomposa – Figueira faz com que sejam tiradas 150 cópias de cada capítulo e de cada listagem de gravações fornecida pelo computador, de modo que todos os setores da emissora saibam exatamente o que fazer. Com vinte dias de antecedência, o cenógrafo Mário Monteiro, 48 anos, começou a planejar a fachada do cinema de Asa Branca, a cidade que ele construiu em Guaratiba. “Fiz uma fachada meio hollywoodiana e pomposa, com bandeirinhas, tapete vermelho e até uma arquibancada de dois degraus para o povo ver as autoridades e os artistas entrarem”, diz Monteiro. A construção dessa fachada atrasou até o início da semana passada. Na segunda-feira, quando as cenas que nela se passam iam ser gravadas, choveu copiosamente em Guaratiba, obrigando a um novo adiamento das gravações para quinta-feira.
Monteiro ao menos teve possibilidade de construir o cinema de Asa Branca, adicionando mais um elemento à cidade cenográfica. Já Raul Travassos, 35 anos, o cenógrafo responsável pelos interiores da novela, pensou em construir a platéia de um cinema e chegou até a comprar 100 metros de tecido para fazer a cortina que cobriria a tela. No final, a coordenadora de produção, Maria Alice Miranda, 34 anos, descobriu e alugou um velho cinema de Botafogo que ainda mantém o aspecto de uma sala de exibição de cidade do interior. Ainda que no capítulo desta quarta-feira não apareça nada de novo criado por Travassos, ele é responsável por alguns dos melhores achado cenográficos de Roque Santeiro. No gabinete do prefeito Flô (Ary Fontoura) ele colocou um quadro mostrando Dom Pedro I e um porta-livro que são imitações dos que existem na sala do presidente José Sarney no Palácio do Planalto. A comparação entre o prefeito de Asa Branca e o presidente do Brasil é apenas insinuada, mas aperta os laços cômicos da ficção com a realidade.
Para fazer a cidade cenográfica de Asa Branca, Mário Monteiro também utilizou o mesmo esquema de alusão à realidade. Em Guaratiba, ele havia construído a cidade de Santa Fé, usada como cenário da mini-série O Tempo e o Vento. Monteiro então aproveitou a estrutura montada para criar uma cidadezinha que fosse parecida com Juazeiro do Norte, no Ceará, Porto das Caixas, no Rio de Janeiro, e Aparecida, em São Paulo – todas cidades que vivem em função da religiosidade popular. Asa Branca se parece com as três, mas tem sua identidade própria e não se confunde com elas.
Prova de resistência – Se Asa Branca funciona perfeitamente no vídeo, em certos momentos das gravações ela se assemelha mais a uma antecâmara do inferno. Em primeiro lugar, porque Guaratiba fica a quase 1 hora de viagem do centro do Rio de Janeiro. Em segundo, porque durante o dia o clima na região varia do muito ao muitíssimo quente. Finalmente, ao entardecer, alguns milhares de insetos descem sobre Asa Branca, picando desde a bela anatomia de uma Ioná Magalhães até os músculos do iluminador Francisco Carvalho, 36 anos, que passa horas e horas carregando e instalando pesados holofotes durante as gravações noturnas. Às 6 da tarde, um funcionário da Globo percorre Asa Branca com um lança-inseticida elétrico, mas os insetos são resistentes e só abandonam a região quando o sol desaparece definitivamente do horizonte.
Para a gravação do capítulo 87, feita na terça-feira dia 17, houve quase uma prova de resistência, envolvendo 500 figurantes, trinta técnicos, vinte atores e atrizes, seis guardas e quinze motoristas – todos eles comandados pelo diretor Gonzaga Blota. Não é fácil liderar tanta gente, e Blota, 48 anos e cinco pontes de safena no coração, só consegue manter um mínimo de ordem com muitos gritos, palavrões e uma certeza absoluta daquilo que faz. “Sem o Blota, não teríamos coragem de gravar uma sequência de cenas tão complicada”, explica o produtor Figueira, que também compareceu à gravação para dar uma ajuda. “Só ele consegue encarar a confusão de frente.”
A confusão começou às 2 da tarde, quando centenas de figurantes se reuniram na frente da Globo, na Rua Von Martius, e deram seus nomes para participar das gravações. Eram pessoas contratadas pela agência Five Star, dirigida por Virgínia Marinho e Janete Mocho, ambas de 32 anos. “A maior parte das pessoas que aparecer no vídeo por curtição”, explica Virgínia. De fato, o cachê (10.000 cruzeiros e um lancha para cada figurante) é pouco atraente para quem pensa em retirar seu sustento da figuração. Às 3 da tarde, quinze ônibus saíram da frente da Globo levando os figurantes, que só retornaram à base à 1 da manhã. “É difícil, mas vale a pena ver os artistas de perto”, diz Zailda Menezes, que mora na Ilha do Governador.
“Sério, cambada” – O consolo dos figurantes é que também os atores e atrizes são obrigados a permanecer horas de pé, na cidade cenográfica, aguardando a hora de entrar em cena. Othon Bastos, por exemplo, ficou 3 horas em Asa Branca durante a gravação noturna e gravou exatamente 15 segundos. “Blota, você não está se esquecendo de mim?”, perguntou ele ao diretor quando este terminou de gravar uma cena com Ioná Magalhães. “É, esqueci, vamos gravar”, respondeu Blota. Mesmo com as dificuldades, nenhum dos integrantes do elenco de Roque Santeiro reclama. “Desde o início da novela, dobrou a minha participação no enredo”, diz Regina Duarte, 38 anos. “Estou muito cansada, mas o trabalho é gratificante, pois a Porcina é um personagem fortíssimo, que deu uma mexida na minha carreira.”
Com o elenco, Gonzaga Blota não tem qualquer problema. Todos o consideram um diretor de mão firme, que aceita improvisações e diz claramente o que pretende dos atores em cada cena. O grande problema são os figurantes, que demoram a assimilar as ordens, costumam olhar para a câmera e sorriem quando devem estar sérios. À medida que as horas corriam, naquela terça-feira dia 17, Blota ia se exasperando. “É para ficar sério, cambada!”, berrava ele num cone formado pelas páginas do roteiro de gravações, fazendo as vezes de um alto-falante. “Ô cabeção, não olha para a câmara.” O tempo passava e agora era a vez de os figurantes, com os estômagos roncando, ficarem irritados. “Cadê o rango?”, perguntavam algumas dezenas de pessoas ao diretor. ”Não sei, não sou cozinheiro”, respondeu Blota, que ouviu de volta alguns palavrões. Blota não pensou duas vezes antes de partir, aos safanões, sobre o figurante, imediatamente expulso de Asa Branca.
“Deixa disso, Blota”, interveio Lima Duarte, 55 anos, um entusiasta do estilo de comando do diretor. É comum que no final de uma cena, Lima puxe aplausos para Blota, dizendo: “Senti firmeza, diretor”. De fato, depois da gravação das cenas noturnas do capítulo 87, ficou a impressão de que o roteiro só foi cumprido porque o diretor, habitualmente pacato, comportou-se como um tigre. “Se a gente facilita, a gravação não acaba nunca”, explica Blota. Faz parte do seu estilo dirigir usando apenas uma câmara e sem olhar sequer uma vez para as imagens que ela está gravando.
Gole de champanhe – Se numa gravação com centenas de figurantes o que vale é a autoridade do diretor, nos estúdios o que conta é o talento dos atores, captados de perto e quase sozinhos. N quarta-feira, dia 18, depois de uma noite de atribulações na cidade cenográfica, Lima e Regina Duarte se apresentaram Às 8 horas da manhã ao diretor e ator Marcos Paulo, que divide com Jayme Monjardim a direção dos capítulos gravados em estúdio. Uma cena difícil esperava os atores: um diálogo de onze páginas em que Porcina perguntava se Sinhozinho Malta iria realmente casar com ela, os dois discutiam e no fim a viúva o obrigava a dizer que não podia viver sem ela. Lima e Regina ensaiaram o longo diálogo apenas uma vez, sem esquecer sequer uma frase e criando outras na hora.
“Silêncio!” gritou o assistente de estúdio Nilton Canavezes, 48 anos, responsável pela ordem no recinto. Todos ficaram quietos e a gravação começou, com alguns técnicos apostando qual dos dois atores iria errar primeiro. Lima e Regina não erraram e foram além, compondo uma cena hilariante. “A festa do casamento vai começar agora”, diria a sorridente Porcina saltando sobre a cama, enquanto o coronel ficava de quatro como um cachorro. A gravação terminou com os dois abraçados e a equipe técnica aplaudindo os atores. “É muito raro gravar uma cena dessas de uma tacada só”, atesta Nilton Canavezes, que convive com atores e novelas globais há catorze anos. Regina Duarte saiu da cama e bebericou um gole de champanhe que deveria aparecer na próxima cena, a ser gravada depois que ela trocasse de roupa.
Até o final desta semana, Regina terá usado 420 roupas diferentes em Roque Santeiro, a maioria delas criada pelo figurinista Marco Aurélio, 30 anos. Para o capítulo 87, Março Aurélio fez um minivestido de paetês prateados. “No começo, o vestido seria comprido, mas ficou muito careta”, diz Marco Aurélio, que, trabalhando ao lado do estúdio, sempre faz questão de dar retoques finais no vestuário de Regina. Por mais que o figurinista capriche nas indumentárias, jamais Regina, ou qualquer outro integrante do elenco, entra para uma gravação sem antes passar pelo crivo da continuísta Carmem Ubilla, uma chilena de 54 anos, na Globo desde a fundação da emissora. É ela quem controla penteados, adereços, jóias e todos os objetos que entram em cena, de modo a que os atores, por exemplo, não apareçam numa cena com uma gravata verde e, na seguinte, na mesma ação, com uma vermelha. Na semana passada, ela interrompeu uma cena para trocar uma gravata de Ary Fontoura, o prefeito Flô.
“Vão ficar doidinhos” – “Roque Santeiro é a novela mais difícil que já fiz até hoje”, diz a continuísta Carmem. Só Sinhozinho Malta tem cinco jaquetas verdes, que diferem apenas nos detalhes, mas que os espectadores mais atenciosos notam implacavelmente. Quando há erros de continuidade, chovem as cartas de protesto para a Globo. Para evitar os erros, a continuísta fotografa todos os atores antes que eles entrem em cena e, na próxima gravação, confere se eles estão iguais. “Um diretor pode ser trocado e quase não se nota a diferença”, diz Carmem Ubilla. “Mas se eu sumir, todos vão ficar doidinhos.” Em Roque Santeiro, ao menos, a afirmação é verdadeira: a novela começou a ser dirigida por Paulo Ubiratan, que teve de se submeter a uma cirurgia cardíaca, e poucos notaram as diferenças no vídeo.
Nas gravações para o capítulo 87, uma nova doença provocou uma baixa no elenco da novela. A atriz Cláudia Raia, 18 anos, que faz o papel da vedete Ninon, alegou uma febre persistente para não comparecer às gravações da manhã de quinta-feira no cinema de Botafogo. Na noite anterior, porém, Cláudia esteve exuberante numa festa na boate Hippopotamus, na Zona Sul carioca. Cláudia garante que não estava de ressaca e, na tarde do mesmo dia, estudava com afinco as falas de suas próximas gravações. “Não sei como vamos fazer para disfarçar a ausência da Cláudia Raia em algumas cenas do capítulo”, diz Antônio Carlos Marques, 39 anos, auxiliar de Gonzaga Blota nas gravações externas.
Problemas desse tipo, no entanto, são facilmente solucionados na mesa de edição de Roque Santeiro, pilotada por Sérgio Louzada, 30 anos, e Célio Fonseca, 32, que gastam cerca de 10 horas para montar um capítulo de 40 minutos. Depois de editado, o capítulo passa pela sonorização, responsável por desde o som do sino até o chacoalho das pulseiras de Sinhozinho Malta – e está pronto para ir ao ar. Fato raro em novelas, Roque Santeiro é comumente vista por quase todos que dela tomam parte. “Quando não posso assistir a um capítulo, gravo no videocassete para poder ver depois”, diz José Wilker, o intérprete de Roque.
Na direção da Globo, o poder de atração da novela gerou na semana passada dois fatos novos, um previsível e outro não. O previsível é a intenção da direção da rede em prolongar a vida de Roque Santeiro por mais um mês. Marcada para acabar em 15 de janeiro, a novela irá terminar, se os autores concordarem, em 15 de fevereiro. O fato imprevisto, surgido de um acordo entre a Globo e produtores americanos, é a ida de Lima Duarte e Regina Duarte para os Estados Unidos, onde deverão contracenar com atores do seriado Dallas. Essa oportunidade impôs a inclusão, na história de Roque, de uma viagem do Sinhozinho e da viúva ao Texas para participarem de uma exposição de animais. Com surpresas como essa, é realmente difícil que a novela perca o pique nas pesquisas de audiência. Sem barrigas à vista, Roque Santeiro marcha célere rumo à unanimidade nacional.
O milagre do sucesso
Com humor e misticismo, a novela de Dias Gomes e Aguinaldo Silva ganha as graças do público.
Os índices de audiência obtidos por Roque Santeiro trouxeram para a direção da Rede Globo um problema tão difícil quanto delicioso: como explicar o sucesso da novela? “Se Roque tivesse sido um retumbante fracasso, teríamos várias explicações na ponta da língua”, brinca Daniel Filho, 48 anos, diretor da Central Globo de Produções. “Diríamos que a novela não tinha um par romântico, que o público prefere tramas adocicadas e psicológicas, que ninguém quer saber de misticismo de cidadezinha do interior, que a audiência não se identificou com os personagens caricatos ou, ainda, que a novela é um gênero em declínio.” Se todas essas informações fossem verdadeiras para explicar o eventual naufrágio de Roque Santeiro, ironicamente elas serviriam, também, para explicar o triunfo da novela.
Depois de matutar muito sobre o assunto, Daniel Filho, prudentemente, arrisca duas opiniões para justificar a comoção provocada por Roque e de antemão admite que ambas são insatisfatórias. “Em primeiro lugar, trata-se de uma questão mágica, com todos os elementos se casando perfeitamente”, afirma. “Em segundo, a própria Globo mudou, existe um astral novo na emissora, fazendo com que todos ousem mais.” Para uma indústria de entretenimento como a Globo, que obviamente monta sua programação da maneira mais científica possível – usando fartamente as pesquisas que medem o gosto do público – recorre à “magia” e ao “novo astral” é uma forma elegante de afirmar que, para além do que é projetado com rigor, existem elementos vagos e imponderáveis.
Pista concreta – Mesmo as pesquisas, na verdade, esclarecem muito pouco, no caso de Roque Santeiro. Mensalmente, a Globo promove enquetes detalhadas sobre suas novelas, usando institutos de pesquisa ou agências de propaganda. Essas pesquisas, que circulam apenas entre um reduzido número de pessoas, revelam quais os personagens preferidos e repudiados pelo público, se a audiência gosta ou desgosta da trama e dos temas e quais os elementos que sobressaem na novela. Na pesquisa sobre Roque Santeiro do mês passado, o resultado mostrou que o público gostava de todos os personagens, da trama e dos temas e o único elemento que chamava a atenção dos espectadores era o humor da novela.
O humor, portanto, é uma das poucas pistas concretas para explicar o fato de que Roque Santeiro caiu nas graças do público. Não se trata de um humor do tipo Jô Soares ou Chico Anysio, mas de um gênero diferente. “Usei o riso para humanizar os personagens”, diz o criador da história, Dias Gomes. “Não acredito que as pessoas da novela sejam anjos ou demônios acabados. Para mim, os personagens são simplesmente engraçados.” De fato, jamais a Globo mostrou, no horário das 8, uma novela tão hilariante quanto Roque Santeiro, ao mesmo tempo em que toca em alguns temas supostamente perigosos, com a religião, o misticismo popular e a política. Dessa salada, nasce a força da novela.
Pandega e galhofa – O misticismo, por exemplo, já havia aparecido na mini-série Padre Cícero, escrita por Doc Comparato e pelo mesmo Aguinaldo Silva e levada ao ar ano passado. Com a diferença de que a mini-série sobre o místico de Juazeiro do Norte era uma espécie de mini-tragédia grega, com muito choro e ranger de dentes, num ambiente árido e rústico. Padre Cícero teve uma audiência fraca. Em Roque Santeiro, o tom é mais de pândega e galhofa, mas nem por isso deixa de captar o misticismo com nuances inusitadas. Quem atesta isso é o ator José Wilker, que nasceu em Juazeiro do Norte e, na infância, comprava peças de tecido preto e as revendia em pedaços para os romeiros, garantindo que eram retalhos da batina do Padre Cícero. “Eu acreditava piamente nos milagres do Padre Cícero, mas nem por isso deixava de arrumar um dinheirinho explorando o mito e a crendice”, lembra Wilker. “Acho que em Roque Santeiro acontece algo semelhante, existindo ao mesmo tempo o respeito e a ironia do misticismo.”
Essa conciliação entre o respeito e a graça com a religiosidade se repete sempre que há gravações em Asa Branca. Antes de entrar na igreja da cidade, que não passa de um cenário repleto de refletores e fios, os figurantes se benzem e chegam a rezar, mesmo sabendo que o lugar não é sagrado. Da mesma forma, em São João Del Rei, o túmulo de Tancredo Neves está sendo venerado como se o político fosse quase um santo. Enquanto novela, Roque Santeiro soube captar esse jogo sutil entre a crença irrestrita e os bons negócios que ela gera – como os feitos por Wilker quando era menino -, sem ofender a fé das pessoas e rindo daqueles que a exploram, a começar por Sinhozinho Malta e o prefeito Flô, que querem manter o mito a qualquer custo.
Cocotas e surfistas – “O Brasil real é esse do misticismo e das falcatruas políticas”, avalia Aguinaldo Silva. “Por isso a novela é tão bem-sucedida.” Para o escritor, o público levou um susto quando viu no vídeo esse país, depois de ter sido submetido durante anos a uma dieta de temas metropolitanos e ligados à juventude. “Acho que os telespectadores estavam cansados de cocotas e surfistas”, diz. Aguinaldo Silva acredita que as novelas das 8 da Globo não se distanciaram da realidade por acaso. “A censura proibia todas as alusões à realidade bruta do país”, afirma, antes de sentenciar. “Se Roque Santeiro tivesse sido apresentada há dez anos quando foi censurada, as novelas teriam tomado um outro caminho.”
É impossível prever o que seria do gênero novela se Roque Santeiro não tivesse sido proibida. E hoje a Globo procura explicações para o sucesso de Roque para vencer um desafio: como fazer com a próxima novela das 8? A única coisa que se tem claro, quando se procura responder a esta pergunta, é uma lista de esquisitos genéricos. “É preciso uma boa história, uma trama com humor e suspense, personagens simpáticos e verossímeis e, por fim, um elenco de primeira linha”, resume o diretor Gonzaga Blota. Ou seja, é necessário repetir Roque Santeiro, que contém todos esses elementos.
Disputa eleitoral – Outro requisito imprescindível é a sátira, de preferência tendo como alvo situações reais. Aguinaldo Silva é um mestre em fazer essas alusões e sátiras. Quando o Beato Salu estava agonizando, por exemplo, ele colocou várias pessoas rezando na frente da Santa Casa de Asa Branca, imitando as cenas que a televisão mostrou durante a doença de Tancredo Neves. Agora, ele está escrevendo capítulos que irão focalizar a disputa eleitoral na cidadezinha, com Porcina e Mocinha (Lucinha Lins) concorrendo ao cargo de prefeito. Ou seja, enquanto a campanha eleitoral estiver se aproximando do desfecho nas capitais brasileiras, no pequeno universo de Asa Branca irá ocorrer uma disputa semelhante. Mais para a frente, quando o cometa Halley estiver visível, o escritor também imagina colocar um cometa cruzando o céu de sua cidade fictícia.
Essas alusões, assim como o cometa Halley, são visíveis a olho nu, e todos os espectadores podem percebÊ-las de imediato. Mas existem outras, mais requintadas ou destinadas a um público mais reduzido. É o caso do discurso de padre Albano (Cláudio Cavalcanti) no capítulo desta quarta-feira, que começa com a frase “Eu tive um sonho” – trecho de um discurso célebre do pastor americano Martin Luther King. Há outras situações que dizem respeito exclusivamente a Aguinaldo Silva e Lima Duarte: ambos são aficionados de corrida de cavalos e, por esse motivo, o escritor colocou uma prova eqüina na trama de Roque Santeiro. “Como a corrida está ligada ao enredo, nada mais justo que eu e o Lima possamos nos divertir com um de nossos esportes prediletos”, afirma Silva.
“Divertir” é um verbo crucial no vocabulário de Dias Gomes e Aguinaldo Silva. “Eu quis apenas contar uma história divertida”, afirma o dramaturgo. Utilizando a fundo a temática regionalista, com seu mundinho fechado e personagens facilmente identificáveis (o prefeito, o padre e o coronel do interior), a dupla de autores criou uma novela cujo sucesso se explica, antes de mais nada, pela sua capacidade de divertir. “Ao rir de Asa Branca, o Brasil na verdade está rindo de si mesmo”, diz José Wilker. É um pequeno milagre, obra do acaso, do bom humor, de uma ótima carpintaria dramática e da recusa do público a considerar o Brasil um país sisudo.