A maioridade penal na ótica de Gavroche

Minha intimidade com o crime se restringe à ficção. Escrevi várias histórias no gênero, na literatura e na tv, mais recentemente: “A Lei e o Crime” e “Fora de Controle”, sem contar as tramas criminais das novelas. Um conhecimento fundado na sua própria imaginação, dirão os bacharéis, mas nem por isso, respondo, menos legítimo que qualquer outro para me credenciar a um pitaco sobre o item mais discutido atualmente da criminalidade no Brasil: a maioridade penal.

Não vou irritar o sentimento de justiça (ou injustiça) das pessoas, tão esgarçado diante de alguns crimes bárbaros cometidos recentemente por menores, afirmando que o assunto não é prioritário. É. Mas diante das estatísticas apavorantes que o país exibe, eu me pergunto se mais uma vez, como é costume nacional, não estamos nos indignando com o detalhe e perdendo de vista o principal.

Alguns números que lembro de cabeça. No início da década de noventa, havia cerca de cem mil presos no país. Hoje são mais de 500 mil, para 250 mil vagas, no máximo. Ou seja, apesar de encher as cadeias, em condições sub-humanas, a violência só faz crescer. A coisa piora quando lembramos que existem cerca de 250 mil mandados de prisão não cumpridos. Quer dizer, se a polícia por algum milagre se tornar eficiente, vamos ter que enfiar 750 mil presos em jaulas que só comportam quando muito 250 mil. Agora perguntem quem é que manda nessas pocilgas? Quem faz o trabalho redentor, educativo? O governo, a polícia judiciária, o ministro da Justiça? Não. As facções criminosas, Marcola, Beira Mar, etc.

No Brasil, são assassinadas por ano 50.000 pessoas. A guerra civil da Síria é pinto para nós. Além disso, em 2011, segundo um levantamento de O Globo, desapareceram 51.700 pessoas. As estimativas oficiais admitem que somem “apenas” 40.000 indivíduos por ano no país.

Chega ou quer mais? Nos Estados Unidos, existem cerca de 350 milhões de armas de fogo em poder da população. No Brasil, por volta de 14 milhões. Apesar do poder de fogo dos irmãos do Norte ser 20 vezes maior que o nosso, nós no Brasil matamos 16 vezes mais gente a bala que eles. E os gringos ainda acham que o far west é lá…

A Anistia Internacional diz que, entre 1999 e 2004, houve dez mil mortes de pessoas pelas polícias de São Paulo e Rio. Segundo a mesma fonte, em 2011, em todo o território dos EUA foram mortas pela polícia 137 (cento e trinta e sete) pessoas. No Brasil, só no Rio e em São Paulo, no mesmo ano, houve 1000 (mil) mortes praticadas pela polícia. Se a gente acrescentar o Nordeste, o Norte…

Ainda segundo a Anistia, nos últimos 30 anos foram assassinadas no Brasil 1 milhão de pessoas. O percentual de elucidação dos crimes pela polícia é ínfimo. No Rio de Janeiro, apenas 2% (dois por cento) dos crimes são resolvidos.

Na Folha de São Paulo, esta semana, Luis Felipe Pondé, que normalmente aprofunda os assuntos de uma maneira instigante, ao falar da tal “maioridade penal’, a meu ver, escorregou na superficialidade. Ele pergunta, depois de arrasar com os pretensos “direito humanos dos bandidos”, que certas pessoas bem pensantes defenderiam: “O que dirão os inteligentinhos quando esse contingente de verdadeiras vítimas sociais do crime (os cidadãos) começarem a se organizar e matar os bandidos a sua volta?”

Ora, caro Luiz Felipe, isso é exatamente o que acontece no Brasil há muito tempo. Esquadrões da morte, milícias, polícias mineiras, etc. Com toda certeza, são essas turmas que nos levam ao pódio mundial do crime. Essa é a realidade acachapante que faz de nós um país bárbaro, onde o linchamento é prática cotidiana. O massacre da Candelária, de 93, está aí para mostrar que a profecia é antiga.

Talvez seja mesmo necessário rever a legislação sobre a maioridade penal. O que eu me pergunto é se uma eventual mudança terá alguma relevância nesse quadro sinistro de violência, desrespeito à lei, abuso de autoridade e desprezo pelos direitos humanos. A não ser que os crimes de morte, para tomarmos um exemplo, cometidos por menores, constituíssem uma percentagem significativa do total. Digamos, cinco mil assassinatos cometidos por menores por ano, dez por cento do total. Aí uma lei mais rígida poderia ter algum papel. Não parece ser essa a realidade. Quer dizer, uma lei para meter nas grades menores de 18 anos, não vai, a meu ver, alterar a tragédia criminal brasileira. O problema é imensuravelmente maior. Enquanto não o encararmos em toda sua dimensão, vamos continuar perseguindo bodes ilusórios.

Como o meu negócio é ficção, termino com ela. O mais fascinante menor de idade bandido da literatura universal é Gavroche, o pivete de “Os Miseráveis”, de Victor Hugo. Apesar de filho, ainda que abandonado, dos terríveis vilões Thénardier, apesar de viver na rua e praticar golpes para se manter, Gavroche é de uma bondade comovente, quase um anjo, rebelde e alegre. Descendem dele desde então incontáveis personagens menores marginais, até o nosso Pixote.

Talvez por influência dessa meninada imaginária, tenho dificuldade em aceitar que só 30 anos de cana sejam a solução para adolescentes criminosos. Eles merecem uma chance. Se os lugares oficiais onde são recolhidos por três anos forem minimamente generosos para lhes oferecer educação e possibilidade de repensar a vida, talvez pelo menos uma parte deles possa revelar o lado Gavroche que trazem dentro de si.

maio 2013