Lembrar o convívio com o Dias Gomes, além de uma honra, é um imenso prazer. Sua inteligência, humor e ironia marcaram o tempo em que viveu, e a mim, particularmente. Dias não era professoral, pelo contrário, apreciava o diálogo de iguais, mas aprendi muito de dramaturgia e de vida com ele. Embora tenhamos nos tornado amigos – eu frequentava a casa, a família e os amigos dele, nossa convivência se deu primordialmente na escritura de novelas e séries. Por esta razão, vou organizar meu depoimento a partir das obras em que tive o privilégio de trabalhar com ele. E de permeio, falo do ser humano.
Roque Santeiro
Conheci Dias Gomes em 1985, apresentado pelo poeta Ferreira Gullar, a quem eu tinha ajudado a escrever uma minissérie para a TV Globo. Imagino que o Gullar elogiou meu trabalho, porque pouco tempo depois o Dias me convidou para ser colaborador em “Roque Santeiro”. A novela havia sido proibida em 1975, antes de estrear, e com o fim da ditadura, 1985, ia ser refeita.
Naquela época, existia a Casa de Criação, concebida, organizada e dirigida pelo Dias junto com o Gullar. Reunia roteiristas e escritores com a finalidade de assessorar a direção da TV Globo no que respeitava aos roteiros das novelas e séries. Não era um órgão decisório.
Funcionava numa charmosa casa antiga, bem perto da sede da Globo, no Jardim Botânico. Foi lá que encontrei o Dias pela primeira vez, para conversar sobre “Roque Santeiro”. Ele me disse que a novela era baseada numa peça que escrevera na década de 60, “O Berço do Herói”, e contou a saga da proibição às vésperas da estreia, em 1975. Com aquela ironia tão característica dele, me confessou que, aos 65 anos, não tinha mais muito saco para escrever novelas, “dar um ano de vida à TV Globo”, disse rindo (quem já escreveu novela sabe que é isso mesmo: consome um ano de vida, no qual você não tem tempo de fazer mais nada), e que por esta razão resolvera encarregar outro autor de tocar a obra a partir da sinopse e dos 51 capítulos já escritos em 1975. Seria o Aguinaldo Silva, com quem eu trabalharia como colaborador. E ele, Dias, supervisionaria.
É fácil imaginar minha alegria com o convite. Naquela mesma tarde, ao chegar em casa, reli “O Berço do Herói”, que conhecia de muito tempo, e um ensaio do Décio de Almeida Prado sobre a peça, em que ele analisa o mito do herói, para me preparar para a empreitada.
O próximo passo foi ler os 51 capítulos que o Dias havia escrito em 1975. Neles, aprendi a escrever novelas e a cultivar profundo respeito pelo dramaturgo Dias Gomes. Eu gostava de novelas, mas confesso que tinha assistido a poucas até então. Outros interesses me absorviam e também, devo confessar, cultivava uns resquícios de preconceito. Ler aquela pilha de capítulos mudou minha cabeça. A facilidade com que os personagens surgiam nos diálogos ágeis, inteligentes, cheios de humor e tiradas imprevistas me cativou e maravilhou desde as primeiras páginas. Fiquei surpreso como a história foi me envolvendo progressivamente, quase de forma obsessiva. Não conseguia parar de ler. Os personagens se desenhavam na minha cabeça com nitidez, como se os estivesse vendo. Melhor professor, eu não poderia ter tido.
E começamos a escrever. O Aguinaldo escaletava os capítulos e, no início, me dava um para escrever, por semana. Depois passou para dois. Ele fez uma pequena modificação na história, acrescentando um personagem, o Padre Albano, para se contrapor ao tradicionalista Padre Hipólito. Albano seria o Padre progressista, defensor da teologia da libertação, muito em voga naquela época. Foi a única modificação relevante inserida nos 51 capítulos, que foram ao ar praticamente iguais aos que o Dias tinha escrito, em especial os primeiros 30 ou 40. Depois, como é natural, as modificações foram aumentando. O primeiro que escrevi foi o 49, se não me falha a memória, com algumas cenas da primeira versão já prontas.
A esta altura, a novela tinha estreado com um sucesso gigantesco, que ninguém pôde imaginar antes. Pelo contrário, teve gente que duvidou que desse certo, como o Daniel Filho, na época diretor de dramaturgia da emissora.
O Aguinaldo e eu nos reuníamos com o Dias regularmente e algumas vezes também com os diretores, Paulo Ubiratan, Gonzaga Blota, Marcos Paulo e Jaime Monjardim. Com o Dias, o papo era sempre muito bom, divertido e instrutivo. Ele não interferia quase nada e a relação dele com o Aguinaldo era tranquila e colaborativa. Mais para o meio da novela é que isto mudou, o que relato adiante.
Ainda no início, não lembro exatamente em que altura dos trabalhos, foi incorporado o Joaquim Assis, também como colaborador, vindo da Casa de Criação, um ótimo profissional e excelente pessoa e amigo, que muito contribuiu para o bom desempenho da equipe.
Não posso falar de como começaram os desentendimentos entre o Aguinaldo e o Dias, porque só chegaram a ser tratados nos nossos encontros quando o clima entre eles já estava totalmente deteriorado. Eu e o Joaquim percebíamos que alguma coisa não ia bem, mas não podíamos imaginar que tivesse tal gravidade. Um exemplo que dá bem a medida do nosso estranhamento, foi o fato de, um dia, o Aguinaldo nos pedir – estávamos ali pelo capítulo 110/120 – que, a partir daquele momento, assinássemos os capítulos que escrevêssemos. Por que, não foi esclarecido. Até aquele momento, os capítulos seguiam sem identificação para o Dias ler e encaminhar para a produção.
Este fato me favoreceu – quem me confidenciou foi o Ferreira Gullar – porque o Dias gostou do meu diálogo e dos meus capítulos. A propósito, conto um caso engraçado que ilustra bem o humor do Dias. Eu tinha bastante liberdade ao escrever os capítulos, estruturados pelo Aguinaldo. E eu costumava introduzir algumas cenas da minha cabeça, às vezes sequências inteiras. Naquela época, governo Sarney, o Ministro da Cultura era um mineiro chamado Pimenta. Um dos itens do programa dele era chamado de política da “broa de milho”, porque visava recuperar os valores tradicionais da cultura brasileira, dos quais a broa de milho mineira seria símbolo. Eu resolvi brincar com isto na novela. Criei uma cena em que o Professor Astromar (o que virava lobisomem) conversava com Roque Santeiro num bar sobre cultura, exaltando o valor do soneto e da broa de milho. Pois bem, alguns dias antes da cena ir ao ar, o Ziraldo, que era amigo e apoiador do Ministro, convidou o Dias para almoçar. Depois de muito rodeio, pediram que ele tirasse a gozação com a broa de milho da novela (não sei como souberam) porque ia pegar mal para eles. O Dias falou com o Aguinaldo e ficou sabendo que tinha sido eu que criei a cena. Me chamou na Casa de Criação e, rindo muito, contou o que tinha acontecido. Não tirou a cena, claro, um gozador como ele jamais o faria.
O estrondoso sucesso da novela – chegava a dar 100 % de audiência, ou quase isto, o Brasil inteiro acompanhava e falava sobre ela – mexeu com os egos. O Aguinaldo dava entrevistas como autor da novela e responsável pelo êxito, o que, a partir de certo momento, começou a irritar o Dias. Em público ou em nossas reuniões, esta desavença não se mostrava claramente. Depois eu soube que nos bastidores e junto ao Boni, chefão da emissora naquela época, o clima emocional andava quente já há tempo.
Estávamos escrevendo os capítulos 150, quando, numa reunião de rotina, para discutir o encaminhamento final da novela, com previsão inicial de 162 capítulos, estabeleceu-se uma atmosfera de fato pesada. Posteriormente, vim a saber que, em encontro conciliatório mediado pelo Boni, o Aguinaldo havia concordado em devolver o comando da novela para o Dias, para que a finalizasse, como uma homenagem. O combinado era que, na reunião a que me refiro, o Aguinaldo anunciaria seu afastamento, mas tal não aconteceu. O clima ficou estranhíssimo, sem que eu e o Joaquim atinássemos com o que estava por trás.
Pouco dias depois, a emissora anunciava que o Dias reassumiria a novela, esticada para 214 capítulos. A partir daí, inconformado com o afastamento, o Aguinaldo desencadeou campanha de violentos ataques ao Dias pela imprensa, dizendo que a autoria da novela era dele, Aguinaldo, que o Dias era um usurpador e outras barbaridades. Não vou entrar nos pormenores, alguns bem desagradáveis, porque não interessa aqui. Só quero ressaltar a elegância e discrição com que o Dias, embora muito magoado, respondeu às agressões, no máximo se valendo da ironia, apesar dos injustos danos causados a sua imagem, naquela época.
Ao retomar as rédeas da novela, Dias manteve a equipe de colaboradores. (Eu não me senti de forma alguma comprometido com o Aguinaldo, ainda que durante todo o trabalho tenhamos tido uma relação gentil, profissional, sem problemas, primeiro porque havia sido convidado pessoalmente pelo Dias e, segundo, a briga deles não era assunto meu).
A descabida dúvida pela autoria de “Roque Santeiro”, espalhada na imprensa, possível pela falta de informação das pessoas – a Globo não se posicionou e não tem o costume de divulgar os textos das novelas – esta dúvida, como disse, foi alimentada por alguns anos, até que a divulgação da sinopse original da novela e de outros documentos, já depois da morte do Dias, encerraram a barafunda.
Foi a partir da reviravolta na condução da novela que minha relação com o Dias se estreitou. Passamos a nos reunir semanalmente numa simpática casa que o Dias possuía no Recreio dos Bandeirantes, naquela época bairro ainda relativamente afastado. Era a casa para fins de semana e férias. “Perto, mas parece que é longe”, o Dias costumava dizer. Ele já tinha casado com a Bernadete, passado o luto pela primeira mulher, Janete Clair, falecida em 1983, que o tinha afetado profundamente, conforme me relatou.
A decisão de esticar a novela – embora previsível, com todo aquele sucesso – nos pegou de surpresa, inclusive o Dias. A história já estava armada para acabar em mais dois blocos. Foi necessária uma ginástica dramatúrgica para retardar o desfecho e evitar barriga. Seriam mais de 50 capítulos adicionais. Eu e o Joaquim ficamos preocupados, mas o Dias, com a experiência que tinha, não se abalou. E aprendi nova lição da dramaturgia de novelas.
Escaleta, para quem não sabe, é a estrutura, o resumo do capítulo que se vai escrever. Geralmente, o titular da novela faz as escaletas que são desenvolvidas, dialogadas, mais precisamente, pelos colaboradores. O Aguinaldo era excelente nisso, nos dava escaletas muito bem estruturadas e detalhadas. O Dias, não, porque sempre tinha trabalhado sozinho, como era comum naquela época. Ele nos passava um resumo do capítulo com os principais acontecimentos, deixando a estruturação a nosso cargo. Falando dos primeiros tempos, o Dias me contou que, quando eram praticamente apenas a Janete e ele a escrever as novelas da Globo, uma atrás da outra, eles eventualmente trocavam. Por exemplo, um estava muito cansado e pedia ao outro para escrever os primeiros capítulos da nova. Considerando as diferenças de estilos entre eles, era tarefa para supercraques.
Em clima ameno e divertido, chegamos ao final da novela e se colocou a questão de como terminar a história. O Dias era muito aberto às sugestões da equipe. Eu então me lembrei do ensaio do Décio de Almeida Prado sobre a peça “Berço do Herói”, em que ressalta a crítica à figura do herói, e me atrevi a escrever algumas considerações que levei ao Dias, defendendo que não tinha sentido, depois de 200 e tantos capítulos descontruindo a figura do herói, no final, reforçar o mito heroico. Ele concordou e, numa reunião, eu o ajudei a elaborar aquele final, de tom fortemente irônico, que parodia o filme americano “O Homem que Matou o Facínora”. Porcina não seria “redimida” pelo amor de Roque Santeiro, ficando com aquele que de fato tinha a ver com ela, Sinhozinho Malta. E Roque desapareceria num avião.
A partir daí, minha amizade com o Dias se estreitou.
Mandala
Dois anos depois, 1988, o Dias apresentou à direção da Globo a sinopse “Mandala”, com história baseada numa das mais emblemáticas peças da dramaturgia ocidental, “Édipo Rei”, de Sófocles, em que o filho mata o pai e casa-se com a mãe. Tão brilhante quanto ousada, a sinopse era um enorme desafio. Como contar uma história dessas para milhões de pessoas, a maior parte com perfil conservador.
O Dias não era escritor de fugir dos desafios, pelo contrário, ele os buscava. O único problema que ele via era como dar conta do exaustivo trabalho de escrever as milhares de páginas de uma novela, tarefa para a qual, como contei, ele já não tinha mais tanto apetite.
Dias me convidou para escrever “Mandala” com ele no seguinte esquema. Ele escreveria os primeiros 36 capítulos e a partir dali eu assumiria. Claro que me senti honrado e aceitei de pronto. E assim seguimos. O Dias começou a escrever e eu fui acompanhando, lendo os capítulos, dando palpites, talvez até tenha escrito algum da primeira parte, estruturado por ele, não lembro exatamente.
Como não podia deixar de ser, quando a sinopse foi mandada para a Censura Federal, os problemas começaram. Dias e eu viajamos para Brasília na intenção de desatar o nó e aproveitar a ocasião para pesquisar grupos místicos da cidade. “Mandala” tinha forte conotação esotérica, o que pode parecer surpreendente, dada a formação e o engajamento ideológico do Dias, marxista e membro do Partido Comunista. Mas se for olhar bem, o tema está presente em toda a obra dele. Basta lembrar de “O Pagador de Promessas”, “O Santo Inquérito”, a adaptação de “O Berço do Herói” para a televisão, que gerou “Roque Santeiro”, em que a religiosidade popular é colocada no centro da construção dramatúrgica, fator a meu ver em grande parte responsável pelo sucesso da novela. Em termos de religiosidade, acho que o Dias era fascinado pelos mistérios não pelas certezas, além de prezar os valores humanísticos presentes em todas as religiões, como a fraternidade, a bondade, o amor, enfim, os princípios humanísticos.
Fomos visitar um dessas seitas, onde a líder nos explicou que, à noite, durante os cultos, aterrissavam ali discos voadores, cujos passageiros eram espíritos de pessoas mortas e outros assombros no estilo. Dias não era um crente dissimulado. Sua visão irônica, em sentido amplo, comportava o acolhimento generoso do que lhe era contrário.
Dos 36 capítulos combinados, o Dias na verdade escreveu 26 – ele tinha uma viagem para a Europa com a família – e me passou a bola, que eu peguei animado. Mas um grande problema não demorou a surgir. Se tinha sido relativamente fácil fazer o personagem matar o pai, casar com a mãe seria muitíssimo mais complicado. Foi o que logo descobri.
Não vou entrar nos detalhes da confusão que foi escrever “Mandala”. O impasse da transa do filho com a mãe (Édipo e Jocasta: Felipe Camargo/Vera Fisher, que além disso se envolveram num rumoroso caso de amor) tornou-se uma via crucis, com repercussão negativa na imprensa e no elenco. Afinal, decidi abandonar este plot e centrei a novela na paixão do divertido bicheiro Toni Carrado pela bela Jocasta. Com esta trama, segurei a novela até o desfecho, apesar das críticas, com 56 pontos de Ibope na média. O Dias se manteve afastado do tumulto, o que até gerou um certo mal-estar entre nós, depois inteiramente superado.
O Pagador de Promessas
Apesar de não ter trabalhado nela, trago esta minissérie para contar um episódio interessante e significativo, que tive oportunidade de acompanhar no convívio com o Dias. Tratava-se da adaptação da peça dele do mesmo nome, escrita na década de 60. Claro que, ao atualizá-la, o Dias incorporou elementos da atualidade na trama, entre esses, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que estava em plena ebulição naquele 1988.
A Censura, que estava nos seus estertores, liberou o texto. Mas o Dr. Roberto Marinho não gostou. E fez o que não era do seu hábito, interferiu na trama, mandando cortar o equivalente a quatro capítulos, de 12 escritos. E assim a série foi ao ar. O Dias, é claro, ficou furioso e fez declarações públicas pesadas contra o dono da emissora. O clima ficou muito tenso. O Dias não se desdisse e esperou o que o patrão faria, admitindo a hipótese de ter seu contrato rompido ou nunca mais renovado.
Como o episódio foi superado entre os dois é o detalhe mais interessante da história. Passado algum tempo, o Dias recebeu telefonema de um assessor do Roberto Marinho que lhe disse o seguinte: “Estou colocando uma nota no jornal com a informação que se segue. Dias Gomes veio à sede da Globo para falar com o Dr. Roberto Marinho. Os dois se fecharam numa sala e conversaram por muito tempo. Ao sair, Dias declarou que estava tudo resolvido entre eles”.
Dias concordou com a solução. No dia seguinte, a nota foi publicada. E não se falou mais no assunto.
Em seguida, Dias escreveu a novela “Araponga”, com o Gullar e o Lauro César Muniz, na mesma época em que eu escrevia “Mico Preto”.
Noivas de Copacabana
Em 1992, Dias nos chamou, ao Ferreira Gullar e a mim, para dizer que tinha recebido encomenda da direção da Globo para uma nova minissérie em 16 capítulos. Ele tinha uma primeira ideia, remotamente inspirada numa novela que a Janete escreveu para o rádio, chamada “Vende-se um Véu de Noiva”, se não me engano. Dias pensou num psicopata que matava mulheres que anunciavam seus vestidos de noiva para vender.
A partir daí, começamos a trabalhar na sinopse. Este foi o trabalho mais prazeroso que fiz com o Dias e o Gullar. Nós nos reuníamos no escritório do Dias, no Leblon, e nos divertíamos muito. Imaginem ter como companheiros ninguém menos que Dias Gomes e Ferreira Gullar. Quisera eu ter memória suficiente para relembrar e reproduzir aqueles papos sobre arte, política, televisão, comunismo, ditadura, fim da União Soviética, etc.
Com a história armada, combinamos desenvolver da seguinte forma. Dias faria os quatro capítulos iniciais, depois eu os quatro seguintes e o Gullar mais quatro, até o décimo segundo. A divisão era por crime cometido pelo personagem central. A partir daí cada um escreveria mais um e o Dias ficaria com o último.
Gullar deu a ideia, excelente, de que o personagem, batizado Miguel, seria um restaurador de obras de arte, o que trouxe sofisticação estética à série.
Depois que entregamos o texto, percebi que havia uma injustificável insegurança na direção da Globo em relação à série. Os motivos, não sei dizer quais eram. De qualquer forma, o elenco foi montado e as gravações começaram.
O Roberto Farias, diretor, no final, declarou ter sido rigorosamente fiel ao texto escrito, o que parece uma obviedade, mas nem sempre acontece, porque muitas vezes os diretores gostam de dar a sua “contribuição”. Não sei bem se o Roberto disse isto para livrar a cara, caso não desse certo, ou por outra razão. O caso é que ele não poderia ter tomado decisão mais acertada. Porque seguir o texto nos seus mínimos detalhes contribuiu para o enorme sucesso da série.
Irmãos Coragem
Três anos depois, 1995, a Globo decidiu fazer o remake do grande sucesso da Janete Clair, “Irmãos Coragem”. Como era natural, o Boni chamou o Dias Gomes, viúvo da autora, para a tarefa. Já contei da pouca disposição do Dias para voltar a escrever uma novela inteira, ainda que remake. E como já acontecera, ele me convocou para o empreendimento. Combinamos que ele faria os primeiros 20 capítulos e a partir dali eu me encarregaria, com ajuda do Gullar e de uma equipe de colaboradores.
Reescrever uma novela da Janete não era uma missão simples para o Dias, não por questões estéticas ou técnicas, mas pelos laços afetivos que o ligavam à autora. Ele decidiu que deveríamos ser o mais respeitosos possível com o texto original. Foi com esta orientação que adaptou os primeiros 20 capítulos e me passou a bola.
As gravações não começaram bem. O diretor escolhido foi o Luiz Fernando Carvalho, que veio com uma visão muito pessoal da obra e evitou o diálogo com os autores. Dias e eu fomos assistir às gravações externas em Diamantina e encaramos a má vontade do Luiz Fernando para conversar. Na verdade, ele se mostrou bastante indelicado e desrespeitoso com o Dias. Não vou dizer que foi esta a causa, mas o clima desagradável certamente contribuiu para o enfarte que o Dias teve lá mesmo em Diamantina, criando uma situação bastante difícil, porque as condições médicas da cidade, como é natural numa localidade pequena, não eram as ideais.
O Dias teve que ser removido de lá num pequeno avião monomotor e algum tempo depois se submeteu à operação de ponte de safena. Lembro de uma conversa que tivemos, eu e o Gullar, com ele, antes da operação. Ele estava impressionado com o detalhe de que seu coração seria retirado e posto de lado, para que os procedimentos cirúrgicos fossem efetuados. “Vão desligar meu coração e depois ligar de novo com um arranque elétrico. Tudo bem, mas e se não pegar?”, disse ele rindo, com seu bom humor de sempre, apesar do momento complicado. Felizmente, a operação foi bem-sucedida.
A novela, no horário das seis, estreou com baixa audiência. Não lembro bem, uns 30 e poucos pontos, o que hoje seria um grande sucesso, mas na época era bem sofrível. O Luiz Fernando imprimiu uma imagem escura, lenta, soturna, totalmente inadequada. A meu ver, como ele vinha da direção de novelas do Benedito Rui Barbosa, achou que podia usar uma estética semelhante no texto da Janete, o que se mostrou um tremendo equívoco. A escrita do Benedito era mais leve nas situações dramáticas, nos diálogos e nos conflitos. Já a da Janete, apesar de extremamente popular, haja vista o sucesso que sempre obteve, na verdade é pesada, densa. O público reagiu às imagens sombrias do Luiz Fernando e audiência foi lá para baixo.
Na passagem do comando da novela para mim, o Dias e o Boni resolveram afastar o Luiz Fernando da direção, o que causou muito falatório desinformado na imprensa. Atribuíram a mim, o afastamento, o que me valeu algumas caras feias, sem maiores consequências, porque o fiasco no Ibope e as críticas internas à direção não davam margem. O veterano Reynaldo Boury assumiu a direção.
Ao assumir a novela, verifiquei que a fidelidade ao texto original era muito problemática. Os garimpeiros em armas nas montanhas contra o poder político opressivo, em 1969, remetiam no inconsciente do público à guerrilha contra a ditadura que se organizava no país; mas em 1995, quem estava nos morros lutando contra a polícia eram os traficantes. Entre outras medidas, decidi reduzir a relevância dos garimpeiros em armas. Conversei com o Dias e ele concordou. Com isso, conseguimos manter a audiência da novela em níveis aceitáveis pela alta cúpula.
Dona Flor e Seus Dois Maridos
Em 1998, Dias voltou a nos chamar, ao Gullar e a mim, para escrevermos com ele uma série baseada em “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, romance de Jorge Amado. Se não me engano, a encomenda inicial era de 20 capítulos. Já havia a adaptação para o cinema da década de 70, realizada pelo roteirista (um mestre) Leopoldo Serran, junto com o Eduardo Coutinho, direção do Bruno Barreto.
Dias estava muito honrado em poder trabalhar sobre uma das obras primas do seu conterrâneo, Jorge Amado. E ao mesmo tempo muito exigido. Adaptar uma obra prima não é tarefa fácil, ainda mais sendo de um amigo.
Logo nas primeiras conversas, nos demos conta de que a tarefa seria muito mais complicada do que enfrentaram os roteiristas do filme. Embora “Dona Flor” seja um romance taludo, quase 500 páginas, os elementos dramáticos, os conflitos, não são muito extensos. A linha narrativa é praticamente uma só, envolta pelas maravilhosas reflexões e pela poesia dos encantadores comentários do autor, o que dá volume ao livro. Só que na arte dramática, como é claro, não contaríamos com o pensamento e as agudas observações do livro. Os conflitos básicos do romance não eram suficientes para 20 capítulos.
Foi necessário criar várias tramas paralelas. O baiano entre nós era o Dias, o único que tinha vivido pessoalmente o meio em que a história se desenvolve. Daí que, em grande parte, recorremos ao universo ficcional construído pelo próprio Dias ao longo da carreira, nos valendo do fato do Vadinho ser viciado em jogo. Daí veio o cassino clandestino, o bicheiro figurão e outras tramas, com a qual conseguimos chegar ao número de capítulos encomendados.
Foi o projeto em que vi o Dias mais empenhado. Acho que ele sentia alguma coisa como um “compromisso de baianos”. Por conta do que já expus, a qualidade dramatúrgica da série se ressentiu. Realmente, eram capítulos demais para o material que tínhamos em mãos. Mas ficou bonita e foi bem aceita pelo público, com o sucesso esperado.
O Projeto Brasil
Depois de “Dona Flor”, o Dias começou a desenvolver o grandioso e magnífico projeto de um conjunto de séries retratando a nossa história, desde o descobrimento até os tempos atuais, em homenagem aos 500 anos do Brasil. Quando nos chamou, a mim e ao Gullar, ele já tinha conversado com a alta direção da Globo, que aprovou a proposta.
A ideia era pegar os momentos mais icônicos da nossa história, como a Abolição, Palmares, a Invasão Holandesa e outros e fazer uma minissérie com cada um deles. Dias escolheu para si próprio a Independência, porque era fascinado pela figura de D. Pedro I. Acho que, de alguma forma, admirava aquele personagem pícaro – mulherengo, irônico – e as pessoas que conviviam com ele: as amantes, os amigos, como o Chalaça e outros. Ele ria muito quando falava do que pretendia escrever.
A mim, ele pediu que fizesse a Invasão Holandesa e logo me passou uma bibliografia sobre o episódio. Fiquei surpreso e ele explicou que tinha tido um programa no rádio, se não me falha a memória, que tratava da história do Brasil. Eram assuntos que ele já havia pesquisado.
Dias estava extremamente animado com o projeto, que realmente tinha tudo para marcar a televisão brasileira. Infelizmente, o destino não quis assim. Algumas semanas depois de começarmos o planejamento, Dias foi receber uma homenagem em São Paulo, acompanhado da Bernadeth, e como todo mundo sabe, morreu num acidente automobilístico.
Sem ele, a Globo engavetou a proposta.
Despedida
Não fui ao velório do meu amigo, que aconteceu no Mausoléu da Academia Brasileira de Letras. Não me senti à vontade. Minha convivência com ele sempre foi informal, irônica, divertida. E a solenidade que lá aconteceria, homenagem mais que justa, diga-se, não era exatamente o estilo dele, nem o meu.
Poucos anos depois, a Globo não renovou meu contrato nem o do Gullar, que em 2005, escreveu na Folha de São Paulo um artigo, intitulado “Omissão no ar”, sobre o nosso amigo e parceiro, que finalizava com as seguintes palavras:
“…Dias Gomes, que deu à TV Globo o melhor de si, não teve seu nome mencionado nem uma vez sequer durante a grande festa dos 40 anos da emissora, nem mesmo quando mencionaram os companheiros de trabalho já mortos. Devo admitir que, nesse ponto, a emissora acertou: Dias continua vivo”*.
Marcilio Moraes
(*) https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0805200522.htm