A negação de si mesmo

Quando Getúlio Vargas era ditador, no Estado Novo, manifestou interesse de entrar para a Academia Brasileira de Letras. Houve grande entusiasmo entre os acadêmicos com a perspectiva de ter o “supremo mandatário” no Petit Trianon. Mas havia um grande problema: todas as cadeiras estavam ocupadas. Só com a morte de um deles, se abriria vaga. Conta-se que, no calor dos nervosos debates para encontrar a solução, um dos imortais, do qual não vou declinar o nome, propôs o próprio suicídio para que a “casa de Machado” evitasse o constrangimento de não ter como acolher tão ilustre intelectual.

(Toda vez que lembro dessa história sou acometido por um acesso de riso incontrolável, e olha que já lembrei dela centenas, talvez milhares de vezes)

Nos meus tempos de comunista, em conversas com camaradas sobre as dificuldades que todos tínhamos de superar nossa formação,  hábitos e anseios “pequeno-burgueses” e nos transformarmos em combatentes da causa operária, ouvi mais de uma vez coisas do tipo: eu sei que as minhas contradições internas não me darão condições de viver na sociedade comunista (pela qual estava disposto a morrer, apesar disso); o mundo vindouro, por que me bato, vai me rejeitar; como ser humano, eu não sirvo para a nova sociedade (por que lutava). Ou seja, pelo menos teoricamente, o objetivo era renunciar a si próprio, renegar o que se era na essência. Este o sonho dos revolucionários daquela época, todos pequeno-burgueses, na origem e na substância (o pequeno-burguês “enfurecido”, como dizia o velho Lênin). A mim, sempre causou estranheza, me repugnou mesmo, esse raciocínio. Negar a própria individualidade me soava, e ainda soa, como uma abominação.

O que me trouxe essas recordações foi a tal manobra do Haddad “incorporar” o Lula. Pelo que leio, ele não é propriamente o representante do Lula, é muito mais que isso. De maneira explícita, o Haddad abdicou de si próprio para virar o Lula. Ele, Haddad, me parece realizar assim o sonho, ainda que secreto ou inconsciente, de uma boa parte dos intelectuais de esquerda: superar a “limitadora” e “insuficiente” condição de pequeno-burguês e se transubstanciar em “operário revolucionário”.

Diluir-se na imagem de um ícone, uma ideia ou um líder é atitude, a meu ver, pouco sábia, em termos existenciais, e perigosa, em termos políticos. Cada um deve tornar-se aquilo que é. Mesmo em termos religiosos (para quem valoriza este argumento), o velho Kierkgaard já dizia: “Tornar-se este único, que todos podem ser, é querer aceitar a ajuda de Deus”.Lula_Haddad