Do roteiro e da qualidade do audiovisual brasileiro

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Outro dia, aproveitei a  indicação da minha série “Plano Alto” como finalista de um prêmio para falar da não valorização do autor-roteirista no Brasil. Postei a reflexão em algumas listas exclusivas de gente do audiovisual, o que gerou algumas respostas equivocadas, a meu ver, o que me obrigou a uma réplica, que vai aí abaixo, junto com um artigo do Mario Sergio Conti na Folha de São Paulo sobre o cinema brasileiro atual. Acho que o Conti não se deu conta de que as deficiências que ele apontou na nossa cinematografia se originam exatamente nos roteiros amadorísticos e precários,  o que corrobora o que eu afirmo sobre a não valorização do autor-roteirista, e do roteiro profissional, e suas consequências na qualidade do que é produzido no país.

Segue a minha reflexão e depois o artigo do Conti.

“Esclareço que, quando levantei a questão desse prêmio, não foi porque me sinta injustiçado ou por aspirar ardentemente o troféu.  A esta altura, tais laureis não alteram em nada a minha vida.
Meu ponto é a não valorização do autor-roteirista, do escritor, no audiovisual brasileiro, fato que explica, a meu ver, o amadorismo, o raquitismo e mesmo a indigência da atividade em nosso país, apesar de todo o dinheiro público investido.
Estou falando das obras de ficção, que é a minha praia. Não se vai ter audiovisual de qualidade – e quando me refiro a qualidade falo de sucesso de público, de reconhecimento artístico, de rentabilidade, de auto-financiamento, de prescindir de verba pública, de respeito internacional – não se terá esta qualidade, repito, enquanto produtores, diretores e burocratas não se convencerem que a dramaturgia está antes de tudo no texto, no roteiro. A improvisação, “a ideia na cabeça e a câmera na mão” só levam ao amadorismo.
Profissionalizar, e bem, os autores-roteiristas, tal como fez a tv aberta, é o primeiro e indispensável passo para chegar ao tão almejado público. A tv aberta chegou principalmente com telenovelas. Quem quiser chegar lá, seja com que formatos forem, tem que seguir o mesmo caminho. Ou se conformar com as eternas reclamações contra os ‘impérios’.”

Marcilio Moraes

 

 

Neva nos brasileiros que somem

Não tem cabimento que a neve caia sobre os brasileiros. Nem que Copacabana esteja deserta num meio-dia de sol. Ou que uma paulistana seja russa e, ainda por cima, Anna Kariênina. São coisas que acontecem só no cinema. E são vistas por culpa de Paulo Emílio Sales Gomes.

Há muitas luas, na Escola de Comunicações e Artes, ele tinha um poder de persuasão que mesclava argúcia e graça. Esguio e com gestos suaves, era o único alinhado entre batas e sandálias, num tempo em que ainda não se inventara o pente. Abria fácil um riso que seduzia pela alegria.

Assim como quem não quer nada, Paulo Emílio repetia em sala de aula suas máximas prediletas: “O melhor filme estrangeiro é pior do que o pior filme nacional”; “O cinema brasileiro é o único que pode nos expressar”; “O espectador só aparece num filme se ele for nacional”.

O raciocínio implicava em considerar Aníbal Massaini Neto superior a, digamos, Antonioni, mas ele não se dava por achado. Viu virtude até em “A Super Fêmea”: a atuação de Adoniran Barbosa. Embora não descurasse do estético, a crítica de Paulo Emílio era política. Ela se fundava numa categoria: o nacional, em que se dava a dialética entre ocupantes e ocupados.

Por essas e por outras, alguns adquiriram o hábito de assistir a todos os filmes nacionais que passam. Para aquilatar a quantas anda a formação nacional. Não é fácil. Com frequência, o hábito vira vício. Ou tara. Ou condescendência, que ajuda a jugular os engulhos.

Paulo Emílio dizia também que o subdesenvolvimento não é um estágio a ser vencido, mas um estado permanente, um pântano. Os filmes nacionais ora em cartaz comprovam a afirmação em toda a sua crueldade.

Porque agora os lançamentos são permanentes e envolvem dinheiro grosso. Há diretores, roteiristas, atores e técnicos de nível. O público vê os filmes. Mas o cinema brasileiro segue bronco, pobre, desengonçado.

“A Estrada 47”, o primeiro filme de guerra nacional desde a invenção do cinema, tem tudo direitinho: capital condizente, tecnologia atualizada, boa produção, interpretações razoáveis, paisagens italianas (o roteiro é confuso, mas, com perdão pela condescendência, deixa para lá). Tem até neve. E é apenas o trilionésimo filme de guerra americano. O melhor de “A Estrada 47” são as poucas cenas com pracinhas da FEB de verdade.

“Entre Abelhas” tem como premissa o desaparecimento, paulatino e misterioso, das pessoas que vivem ao redor do personagem principal. Novamente, a carpintaria segue a cartilha do cinema dominante. Como o filme se passa no Rio, o Brasil serve tão somente de cenário para um enredo que tem menos a dizer até que “Sorria, Você Está Sendo Filmado”.

De nacional, “Entre Abelhas” tem só a agitação sem propósito entre drama e comédia. Fábio Porchat faz Bruno, o hiperexcitado protagonista, com o mesmo histrionismo que emprega no Porta dos Fundos. Não sabe onde por as mãos quando tem que se aquietar por cinco segundos.

“Anna K.” cabe noutra categoria. Dirigido pelo pintor José Roberto Aguilar, não está de olho no grande público. Mas é um filme de pintor no mau sentido: privilegia as imagens em detrimento da narrativa. É também pedante (o título ecoa Anna O., a histérica de Freud); torna Tolstói incompreensível, divaga às tontas e não chega a lugar nenhum.

Ainda assim, um filme brasileiro falado parte do tempo em russo (com legendas) tem um quê amalucado que o faz simpático. Os desempenhos de Leona Cavalli e de Vadim Nikitin, que recita com brio Pushkin e Pasternak no original, compensa algo da barafunda de “Anna K.”.

Em matéria de filmes brasileiros, é o que há. É de se perguntar o que Paulo Emílio Sales Gomes diria deles, e dos rumos da deformação nacional. Talvez abrisse seu vasto sorriso.

MARIO SERGIO CONTI