Gullar

Meu amigo Ferreira Gullar morreu e eu nem pude comparecer ao velório. Estava viajando. No momento, não tenho cabeça para falar do quanto estou triste, nem para escrever sobre os papos que batíamos ou sobre os trabalhos que fizemos juntos.
Não sei o quanto se falou do trabalho dele na televisão. Achei aqui um texto do próprio Gullar, publicado na Folha de São Paulo há uns dez anos atrás, em que ele comenta os tempos de Globo, que foi onde convivemos mais, homenageia o amigo Dias Gomes e me cita pessoalmente, o que muito me honrou. Grande Gullar. Inesquecível.

FERREIRA GULLAR

Omissão no ar
Dos 40 anos de existência da TV Globo, agora comemorados, 20 trabalhei nela. Tudo isso?! Espanto-me -e tanto mais porque nunca o desejara. Já bem antes de mim, três outros companheiros do Grupo Opinião haviam trabalhado ali: Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes. Daí nasceu “A Grande Família”, que está até hoje no ar como um dos melhores programas da TV brasileira. Na minha opinião, é claro.
O quarto amigo a entrar foi Dias Gomes, cuja companheira, a doce amiga Janete Clair, já fazia sucesso com suas novelas de grande impacto emocional. Ao regressar do exílio em 1977, fui convidado por Dias a escrever com ele a novela “Sinal de Alerta”. Na verdade, sua intenção era ajudar-me a sustentar a família. Hesitei, já que nunca tinha escrito para televisão, mas não foi tão difícil quanto eu temia, o que não significa que me tenha tornado um mestre no gênero.
Mas me dediquei seriamente ao trabalho para dominar os segredos dessa técnica narrativa, inicialmente em parceria com o próprio Dias e, logo depois, com Paulo José, com quem também muito aprendi. E foi Paulo José quem me fez escrever meu primeiro original para a televisão, um especial em dois episódios intitulado “Dona Felinta Cardoso, a Rainha do Agreste”, dirigido por ele e que deu certo.
Em seguida, fiz parte da equipe de redatores do seriado “Carga Pesada”, do qual escrevi vários episódios e, no ano seguinte, “Obrigado, Doutor”. Num desses episódios, um barbeiro ciumento seqüestra a própria mulher e ameaça matá-la. O doutor (Francisco Cuoco) consegue chegar até ele e argumenta: “Quem ama não mata”. Daniel Filho, com seu faro aguçado, captou essa fala e me disse que ela sozinha daria uma minissérie. E, de fato, alguns anos depois, essa minissérie foi escrita e exibida com sucesso pela Globo, tendo por plot precisamente o caso de uma mulher apaixonada que mata por ciúme. O poder irradiador da televisão popularizou de tal modo a frase que ela se transformou em slogans para toda obra: “Quem ama não suja” (campanha de limpeza urbana), “Quem ama não polui” (preservação do meio ambiente) etc. Esse é um dos lados gratificantes do trabalho na televisão; há outros menos agradáveis, como ter que produzir 24 capítulos com uma história que só renderia cinco ou ver desastradamente mutilado um roteiro que você escreveu com tanta emoção e capricho. Por isso mesmo, sempre disse que trabalhava na televisão apenas para ganhar dinheiro. Muita gente dentro da Globo se sentiu ofendida com essas declarações e tudo fazia para me pôr fora de lá, mas não conseguia porque eu contava como o apoio poderoso de Boni e Dias Gomes; depois que um saiu e o outro morreu, preparei-me para ser demitido e o fui, sem demora, o que me fez muito bem, pois me livrou do estresse e da TPC (tensão pré-renovação contratual), que resulta da estranha tática adotada por certos executivos da Globo de só renovar o seu contrato quando você já perdeu noites de sono e está dopado de Diazepan… Aí o cara tira o contrato da gaveta e diz: “Vamos renová-lo por mais um ano. Assine aí”. E o pior é que não é ele quem decide nada, a decisão já fora tomada pela direção da emissora -ele é apenas o pequeno algoz, que só se realiza plenamente quando pode dizer-te: “Estás demitido, amizade”. Esse é o lado pior. Mas a TV Globo tem muitos lados bons e um deles é pagar bem a seus artistas, pagar-lhes em dia e dar-lhes meios técnicos de alta qualidade para trabalhar.
Com Dias Gomes, Marcílio Morais, Lauro César Muniz e Joaquim Assis, tive os melhores momentos dos longos anos em que ali trabalhei. Dias foi o mestre que, com seu talento e competência, me possibilitou escrever algumas coisas de boa qualidade, como “As Noivas de Copacabana”, considerada então pelos dirigentes da emissora “uma obra-prima, que a todos nos orgulha e envaidece”. Tenho a vaidade de ter sido o defensor da idéia que Dias já havia descartado como inviável. Mas a verdade é que a minissérie nunca teria tido a qualidade que teve sem a sua inventividade e capacidade de roteirização, virtude essencial da teledramaturgia. A contribuição de Marcílio foi também decisiva.
Juntos, o Dias e eu, escrevemos também (desta vez com Lauro César Muniz) a novela “Araponga”, tema igualmente escolhido por sugestão minha, já que me negava a escrever novelas sentimentais. Sei que é próprio do gênero folhetinesco muitas lágrimas e soluços, mas é o gênero que não me agrada: sugeri que fizéssemos uma comédia policial. O personagem Araponga assim se chamou porque descobrimos que os membros do SNI costumavam adotar nomes de pássaros como codinomes: pipira, sabiá etc. O nome Araponga entrou para o vocabulário jornalístico para designar os policiais grampeadores de telefones. Aliás, Dias Gomes, autor de novelas inesquecíveis, criou personagens que passaram a conviver conosco como parte do Brasil imaginário. Pois esse mesmo Dias Gomes, que deu à TV Globo o melhor de si, não teve seu nome mencionado nem uma vez sequer durante a grande festa dos 40 anos da emissora, nem mesmo quando mencionaram os companheiros de trabalho já mortos. Devo admitir que, nesse ponto, a emissora acertou: Dias continua vivo.