A enigmática frase do velho James Joyce me ocorreu ao observar o panorama político atual. Eu que vivi o golpe de 64, quando estava apenas descobrindo a política e namorando as hostes revolucionárias, fico perplexo vendo parte da esquerda, gente da minha faixa etária inclusive, a entoar o mantra do “não vai ter golpe” e a relacionar o que acontece hoje com aquela época, como se alguma semelhança pudesse se estabelecer.
Outro dia assisti o Caetano dizer num programa de televisão que via mais parecença das manifestações do dia 13 de março deste ano com a “marcha da família”, de 64, do que com a “passeata dos cem mil”, esquecendo que esta aconteceu em 1968, mais de quatro decisivos anos depois, em circunstâncias inteiramente diversas. Só para dar um exemplo, vários jovens que estiveram na “marcha da família” e se entrincheiraram ao lado do governador Lacerda no Palácio Guanabara, numa risível “defesa” do movimento militar, em 68 estavam engajados na luta armada. Não cito nomes, alguns bem conhecidos, porque pode ferir suscetibilidades. O que quero mostrar com o exemplo é que, primeiro, a cegueira radical e a ignorância política fazem a pessoa pular de lado sem nenhum discernimento; segundo, usar este detalhe para ilustrar a abissal dessemelhança entre os dois momentos equiparados por Caetano.
Em 1964, o mundo estava dividido pela chamada “guerra fria”, e a repressão violenta se acirrava nos dois lados: pela direita, os golpes militares na América Latina, o massacre dos comunistas na Indonésia; pela esquerda, a invasão da Tchecoslováquia, a revolução cultural na China, para citar apenas dois exemplos de cada um. Ou seja, o golpe no Brasil, embora com fundas motivações nacionais, se inseria no quadro maior da guerra fria. Hoje, as divisões do mundo são inteiramente outras. A União Soviética acabou, a China adotou descaradamente o capitalismo, sob a ditadura do partido. Quer dizer, não existe mais comunismo, a não ser como piada, tipo Coreia do Norte. E se não existe mais comunismo, não há, no plano internacional, ninguém interessado em promover um golpe anticomunista no Brasil, como aconteceu em 64.
Ou seja, toda essa movimentação de esquerda em nosso país, com uniformes e bandeiras vermelhas, anacrônicos “partidos comunistas”, embalada por palavras de ordem contra um suposto “golpe” de direita é não apenas delirante como ridícula.
Se este simulacro, construído com má informação e má fé, fosse verdadeiro, só nos restaria dizer, como o personagem Stephen (foi ele ou o Bloom?) no “Ulisses”: “a história é um pesadelo do qual tento acordar”.