Cinquenta mil Amarildos

Extremamente oportuno, ainda que tardio, o grito que vem das ruas: onde está o Amarildo? O fato é que o desaparecimento desse rapaz, por mais cruel que seja dizer, nada tem de extraordinário num país onde somem por ano cerca de 50 mil pessoas. Segundo levantamento de O Globo, em 2011, foram registrados nas delegacias 51.703 ocorrências, ou seja, uma pessoa a cada 11 minutos. É o caso de bradar: nunca antes na história se viu tal descalabro.

O trágico sumiço do pedreiro Amarildo ocorre na esteira de décadas de conivência das autoridades, em todos os níveis, com os desmandos das polícias. Ontem, a ministra dos direitos humanos veio a público dizer que a principal linha de investigação deve ser a atuação da polícia. Tem razão, mas o fato é que nos últimos dez anos a preocupação do governo federal ficou muito mais com as violações que aconteceram 30, 40 anos atrás, na ditadura, do que com os milhares de assassinatos que ocorrem todos os anos no Brasil. Entre 2004 e 2007, para citar estatísticas seguras, foram mortos a bala no Brasil 192.804 pessoas, número maior que qualquer guerra ocorrida no mundo, no período.

Tratei da violência policial em uma novela e dois seriados que escrevi nos últimos anos: Vidas Opostas, A Lei e o Crime e Fora de Controle. Vão dizer que minha autoridade para falar disso é pura ficção. Que seja. Certa vez, num debate sobre o gênero policial, perguntaram se eu me cercava da assessoria de policiais para escrever. Respondi que não. Não havia necessidade. Com o conhecimento que tenho do Brasil, da alma do brasileiro, do nosso serviço público, das notícias que leio todos os dias nos jornais, etc, podia imaginar perfeitamente como funcionava nossa polícia. Quem quiser conferir esse debate, veja no link: https://marciliomoraes.com.br/entrevista/programa-ver-tv-debate-o-genero-policial/

Vai ser muito difícil para o país, para nós todos, encararmos de frente este problema, tão habituados estamos com a violência e o desrespeito. O primeiro passo é esquecermos a conversa de povo cordial, de que somos bonzinhos, etc. Não somos. Em grande parte, o que preside a vida nacional ainda é o espírito de cangaceiro.