Comentários de um autor-roteirista ao programa de apoio a núcleos criativos da Ancine

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A luta fundamental dos autores-roteiristas, que acreditamos ser também a questão mais importante para o audiovisual, é pela valorização do roteiro com o consequente reconhecimento dos profissionais. A tradição brasileira, exceto na televisão aberta, infelizmente, tem sido subestimar o roteiro. O conhecido postulado “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” ilustra bem esta postura.

Na batalha para reverter o quadro, nossa posição tem sido levada a produtores, exibidores e agentes governamentais. Avanços foram conseguidos, por exemplo, com alguns programas lançados pela Ancine. O chamado Prodav 3, de apoio a núcleos criativos, foi um dos que mais despertou nossas esperanças. No entanto, falando estritamente em nome pessoal, minha experiência não tem sido muito animadora.

Neste ano, perdi a paciência e mandei para a Ancine uma crítica à desclassificação da proposta que apresentei pela minha empresa. A Ancine negou, claro, alegando que meu “recurso” não tem argumentos que invalidem as notas dadas.

Resolvi divulgar o “recurso” porque talvez possa servir para a discussão, mesmo que seja como mau exemplo. Vejam aí:

 

“Prezados Senhores,

Esta é a terceira vez que participo, através da minha empresa, e como líder criativo, da Chamada PúblicaBRDE/FSA Prodav 03. Mais uma vez minha proposta não atingiu pontuação suficiente.

Não vou discutir os termos e as apreciações contidas nos pareceres que embasaram as notas. Devem se fundar em critérios que alguém com poder para tal estabeleceu. O que me interessa neste recurso – vou manter a terminologia – é levantar questões de fundo.

Na minha expectativa, e acho que na da maior parte dos meus colegas, este era um programa que se destinava fundamentalmente a apoiar, de forma diferenciada, os autores-roteiristas e não produtores, diretores e outras categorias profissionais do audiovisual.

Quando digo “apoiar os autores-roteiristas” não me refiro a premiá-los com algumas oportunidades de faturarem honorários mais justos. Este resultado deveria ser obtido com maior fiscalização, por parte da Ancine, sobre a administração dos projetos que patrocina.

Apoiar autores-roteiristas – partindo do reconhecimento de que são eles os responsáveis pela base sobre a qual se constrói a obra audiovisual – é apostar nos sonhos e na competência de profissionais quase sempre submetidos a grandes empresas produtoras, ou mesmo pequenas, sem poderem alçar os voos independentes de que são capazes.

Apoiar autores-roteiristas de forma inovadora e diferenciada é dar a eles possibilidade de desenvolverem suas próprias ideias, sem terem de se enquadrar aos critérios, bons ou maus, de organizações que têm lá seus objetivos e seus interesses.

O autor-roteirista é um escritor que precisa ter meios para construir o acervo dramatúrgico, a matéria prima indispensável para o estabelecimento de uma indústria audiovisual sólida e vitoriosa. O Brasil tem uma excelente literatura, mas não precisamente uma literatura com insumos dramatúrgicos suficientes para alicerçar os diversos gêneros do audiovisual, como têm os Estados Unidos, cuja literatura policial, por exemplo, é um manancial inesgotável de temas, personagens e tramas para filmes e séries. Aqui no Brasil, esta base tem que ser elaborada, e não vai sê-lo por “produtores, produtores executivos, diretores, coordenadores de equipes criativas” (enumeração apresentada pelos pareceristas na avaliação da qualificação técnica do líder). Só os escritores podem dar conta da tarefa.

Nós, autores-roteiristas, a partir de conversas que tivemos com o Presidente da  Ancine, imaginávamos que a iniciativa resultante daqueles entendimentos, que se materializaram na Chamada Pública BRDE/FSA Prodav 03 teria esta visão. Infelizmente, não tem.

Cito o meu caso, não como reclamação, mas como exemplo. Sou roteirista há 32 anos. Sempre fui excelentemente pago, o que deve indicar, pelo menos, que sou um profissional sério e eficiente. Capitaneie vários projetos de dezenas de milhões de reais, comandei várias equipes de profissionais, obtive sucessos e fracassos, ganhei prêmios e até uma certa notoriedade. No entanto, os pareceristas da Ancine me atribuíram nota 4, como líder, ou seja, me consideraram apenas 80% adequado à tarefa.

No que respeita à equipe, os analistas foram igualmente lacônicos, nota 4, 80% da capacidade máxima. A análise dos projetos, a mim que estou nesta batalha há décadas, parece estranha e gratuita: “não define de forma clara público alvo nem estratégias de comunicabilidade”, “fornece um desfecho vago”, “foram apresentadas apenas 3 sinopses com uma narrativa inconclusa”, e outras observações vazias. Ora, se o programa é para desenvolvimento e oferece um prazo de 18 meses, o que importa de início é apenas o potencial da ideia, que, ao longo do trabalho, poderá tomar os caminhos mais inesperados de início. Esta é a graça, este é o aspecto criativo da empreitada.

A minha empresa, com a qual concorri, ao longo desses 32 anos praticamente só produziu roteiros, inúmeros, com os quais auferiu faturamentos significativos. Ou seja, é uma empresa especializada em roteiros, com tradição e solidez. Mas para os analistas da Ancine só vale 3, quer dizer, é 60% eficiente.

Nestes 32 anos, tive que me adequar aos critérios e perspectivas das grandes empresas em que trabalhei, mesmo nos projetos – novelas, séries, de criação exclusiva minha. Nem poderia ser de forma diferente, claro. Como muitos colegas da televisão e do cinema, tive a ilusão de que o programa em questão me possibilitaria desenvolver projetos apenas com meus critérios e com as minhas perspectivas. Pena que, até agora, não foi possível.

Marcilio Moraes”