Esse acordo do Bolsonaro com evangélicos – evidenciado, por exemplo, com a nomeação de um pastor protestante para o Ministério da Educação – tem um aspecto contraditório que eu não vejo como pode ser superado. Porque para os mestres da chamada “ala ideológica” do governo, adeptos do Tradicionalismo, liderada por Olavo de Carvalho, e que inclui os filhos do Presidente, o Protestantismo (Lutero e outros) está na origem da degeneração intelectual e religiosa da Civilização Ocidental, tanto quanto o Individualismo e o Racionalismo, correntes de pensamento que surgiram no cerne da Renascença, tida por eles como marco inicial da decadência do Ocidente.
Reproduzo abaixo parágrafos de um livro de René Guénon – “La crise du monde moderne”-, um dos expoentes do Tradicionalismo, muito considerado pelos teóricos da tal “ala ideológica”. Se alguém conseguir conciliar essas ideias com a nomeação de ministros “terrivelmente evangélicos”, me diga.
“…A tradição ocidental era nessa altura, exteriormente, uma tradição de forma especificamente religiosa, representada pelo Catolicismo; é então no domínio religioso que temos que ver a revolta contra o espírito tradicional, revolta que, quando tomou uma forma definida, se chamou Protestantismo. É fácil dar-se conta que se trata de uma manifestação do individualismo, a tal ponto que se poderia dizer que é o individualismo considerado na sua aplicação à religião. O que faz o Protestantismo, como o que faz o Mundo Moderno, é apenas uma negação, essa negação dos princípios que é a própria essência do individualismo; e pode-se ver ainda nisso um dos exemplos mais surpreendentes do estado de anarquia e de dissolução que é a sua consequência…”
“…Foi, efetivamente, o que aconteceu: para substituir a autoridade da organização qualificada para interpretar legitimamente a tradição religiosa do Ocidente, o Protestantismo pretendeu colocar o que chamou de “livre exame”, ou seja, a interpretação deixada ao arbítrio de cada um, mesmo dos ignorantes e dos incompetentes, e fundada unicamente sobre o exercício da razão humana. Era, portanto, no domínio religioso, o análogo do que iria ser o “racionalismo” em Filosofia; era a porta aberta a todas as discussões, a todas as divergências, a todos os desvios. E o resultado foi o que devia ser: a dispersão numa multidão sempre crescente de seitas, cada uma das quais representa apenas a opinião particular de alguns indivíduos. Como era, nessas condições, impossível se entender em relação à doutrina, esta passou rapidamente para segundo plano, e foi o aspecto secundário da religião – a moral – que tomou o primeiro lugar; daí essa degenerescência em “moralismo”, que é tão sensível no Protestantismo atual…”