Direitos dos Animais

A Hora da Verdade

Os jornais noticiam o pedido de instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar maus tratos a animais no Brasil. A iniciativa é bem-vinda e merece apoio daqueles que se preocupam e se sensibilizam com o sofrimento causado a animais por ação humana.

O resgate dos beagles em São Paulo, pela comoção que causou, pode se constituir numa oportunidade privilegiada para que se revertam as atitudes e as políticas praticadas no Brasil no que respeita ao uso de animais, seja para atividades econômicas ou pesquisas científicas.

É a chance de reivindicar a “hora da verdade” sobre este assunto. Abrir a caixa preta, ou melhor, a caixa sinistra dos procedimentos com animais em laboratórios, universidades e empresas. A população precisa saber, em detalhes e sem disfarces, o que acontece lá dentro, para poder decidir até que ponto aceita que animais sejam submetidos a processos cruéis em nome de pretensos avanços científicos. Assim como o governo instaurou uma comissão da verdade para apurar o que se passou nas prisões da ditadura, longe dos olhos da população, é oportuno que agora se crie uma comissão que traga à luz a maneira como são tratados os animais nos “porões” dos laboratórios comerciais e entidades de pesquisa.

O dito “interesse científico” não pode ser tomado como princípio absoluto. Deve estar submetido democraticamente ao escrutínio dos valores éticos e emocionais da população. Procedimentos com animais que a um frio pesquisador profissionalmente envolvido pareçam banais e indiferentes podem ser inaceitáveis aos olhos da população, que é quem, em última análise, financia a atividade.

Que não se venha argumentar que a proibição de práticas consideradas indignas irá prejudicar o progresso da ciência e da humanidade. Argumentos semelhantes já foram usados para defender a escravidão, para defender a exploração, para defender privilégios, para defender o desrespeito e a iniquidade. Avanços que as experiências com animais possam proporcionar, com toda a certeza, poderão ser obtidos de outras formas. Talvez dê mais trabalho e o custo aumente um pouco, mas nada que inviabilize pesquisas. Afinal, não é a posse de inteligência superior o argumento por excelência que os humanos utilizam para se considerarem senhores de todas as outras formas de vida no planeta? Pois que se use a inteligência para encontrar formas de pesquisa e exploração econômica sem aviltar a dignidade dos demais seres vivos que conosco compartilham o mundo.

Afirma-se que qualquer ato, ainda que brutal, é válido, se tem por objetivo salvar vidas humanas. Assim se justifica a utilização de animais em experiências científicas. Argumento difícil de rebater, porque todos nós que discutimos a questão somos humanos. Os animais não têm voz neste debate, nem em qualquer outro. Contrapor algum suposto direito animal ao direito humano à vida seria, em princípio, uma blasfêmia, um contrassenso, uma desumanidade, no sentido literal da palavra.  “O homem é a medida de todas as coisas”, dizia o sofista  grego Protágoras. E os animais, não terão medida no direito dos homens ?

A dificuldade de estabelecer fundamento jurídico para o direito animal, equivalente aos direitos humanos, é que os animais, não sendo humanos, como é óbvio, são considerados coisas. Ora, coisas, por princípio, não têm direitos, pelo menos nos termos da cultura ocidental.

Então como fundamentar filosófica e juridicamente a salvaguarda para os animais não serem vilipendiados pelos humanos? A resposta tem que ser encontrada no próprio direito dos homens, porque a medida humana não tem que ser necessariamente mesquinha e utilitária. A generosidade, o respeito e a bondade também fazem parte da sua dimensão. Também é um direito humano ter sua sensibilidade respeitada: para muitas pessoas é insuportável ver ou mesmo ter conhecimento de crueldades praticadas com animais; igualmente é direito humano ver seus valores éticos serem considerados nas práticas sociais: para muitos de nós é antiético usar animais em experimentos ditos científicos. Serão esses direitos subalternos a outros, ditos de caráter comercial ou científico, que afirmam ser necessário o sacrifício de animais para o progresso humano? Que progresso? Que ciência?

Esta polêmica tem que ser decidida democraticamente. É imprescindível que todos os procedimentos com animais no Brasil se tornem públicos. Transparência total. E que a população decida se são aceitáveis.

Até que isto aconteça, atitudes como o resgate dos beagles e a invasão de faculdades de medicina continuarão a acontecer. E as autoridades não terão moral para condená-las.

Marcilio Moraes

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