Autor de novelas ri do próprio ofício e de colegas em novo romance
Mauricio Stycer
18/05/2018
Com mais de 30 anos de carreira como autor de telenovelas, Marcílio Moraes lançou esta semana o seu segundo romance, “Entre as estrelas: Aquiles” (editora 7 Letras, 140 págs., R$ 47). Ambientado no Rio, no início dos anos 1990, o livro tem como protagonista justamente um homem que vive de escrever folhetins para a principal emissora de televisão do país.
Não faltam motivos para achar que se trata de um “roman à clef”, literalmente, um “romance com chaves” – uma ficção com alusões a personagens reais. Já na capa, um subtítulo informa: “A saga de um autor de telenovelas”. Joca, o protagonista, é um novelista bem-sucedido. Ele está começando a escrever uma nova trama quando é informado, pelo diretor, que a atriz para quem escreveu especialmente um papel foi deslocada por ordens superiores para integrar o elenco de outra novela.
Alcoólatra, o protagonista do romance entra em atrito com o principal executivo da emissora e faz inúmeras reclamações, ao longo da história, sobre a baixa qualidade das novelas. Joca se relaciona ou tem atritos com vários outros autores, quase sempre descritos de forma debochada e pouco simpática.
Marcílio testa vários recursos literários ao longo do livro. O fluxo de consciência do protagonista se alterna com a narrativa em terceira pessoa. Trechos da novela que está escrevendo se misturam com a própria história. Em alguns momentos, o leitor é levado a pensar que a vida de Joca é, também, um drama de novela. É uma boa leitura.
Marcílio foi colaborador de Dias Gomes em “Roque Santeiro” e “Mandala” e de Lauro Cesar Muniz em “Roda de Fogo”, todas na década de 1980, na Globo. Na mesma emissora, assinou como autor titular, no início da década seguinte, “Mico Preto” e “Sonho Meu”. Desde os anos 2000, é autor da Record, onde escreveu novelas (“Essas Mulheres”, “Vidas Opostas” e “Ribeirão do Tempo”) e séries (“A Lei e o Crime” e “Fora de Controle”). Seu último trabalho, a boa série “Plano Alto”, é de 2014.
O primeiro romance do autor, “O Crime da Gávea”, foi adaptado para o cinema. Na entrevista abaixo, Marcílio fala do novo livro e explica se é possível fazer paralelismos da história com o mundo real.
Você tem dito que “Entre as estrelas: Aquiles” é literatura, antes de tudo. Mas o subtítulo, “A saga de um autor de telenovelas”, parece sugerir que é algo mais. O que o leitor pode esperar deste romance?
Marcílio Moraes: Tenho ressaltado que “Entre as estrelas: Aquiles” é literatura porque, estando há mais de três décadas na televisão, e ainda mais com um subtítulo desses, achei conveniente advertir que não se trata de um roteiro ou coisa do gênero. Literatura porque se trata de um mergulho na subjetividade do personagem, o que só a literatura permite, na plenitude. Você pode abordar a subjetividade também no cinema e mesmo na televisão, mas só com recursos narrativos literários é possível verdadeiramente chegar lá, a meu ver. E é o que eu mais gosto na literatura, esse adentramento na experiência íntima do personagem, ainda que desagradável ou perversa.
O personagem é um autor de telenovelas, mas como eu quis falar da subjetividade dele, a televisão, seus bastidores e fofocas entram no romance na condição de matéria prima literária, ou seja, num plano secundário, observados através de um filtro de outra natureza.
Quanto ao subtítulo, devo confessar que tem um pouco de marketing, porque embora seja uma obra de literatura, sei perfeitamente que o poder da televisão, sobretudo das novelas, desperta interesse, atrai público, no caso, leitores. E eu acho que o público de televisão vai curtir o livro.
A história se passa no início dos anos 1990, uma época em que você era autor de novelas da Globo. É um “roman à clef”?
Ahahahahahh. Pergunta complicada. Eu não diria que se trata de um “roman à clef”. Como já expliquei, trata-se de um mergulho na subjetividade do personagem, que por acaso é um autor de telenovelas. Qualquer objetividade ali é problemática, porque os fatos narrados sofreram a deformação da mente conturbada – alcoolizada ou irada ou amedrontada – do personagem. Então, encontrar correspondências entre fatos e personagens reais com o que é narrado no livro será sempre um exercício arbitrário. Pode ser fulano, mas também pode não ser. Se alguém pensar “avoir la clé” (ter a chave), vá em frente. Eu me eximo de qualquer responsabilidade. Ahahahahah
Ao convidar os amigos para o lançamento, você escreveu: “Acho que todos os amigos vão se divertir, os escritores e pessoas de TV, em especial, claro, se não se zangarem… ahahahahah. Juro que não há motivo para isso, porque é tudo ironia.” Quer dizer, você considera o risco de alguns leitores entenderem que o livro está falando deles?
Você mesmo levantou a hipótese de ser um “roman à clef”, ou seja, considerou que há margem para alguém se achar retratado. Eu digo que não. Tudo ali é ironia, a começar pela inspiração, aquele pretensioso “Aquiles” do título, remetendo a duas obras-primas universais: a “Ilíada”, do grego Homero, e “Ulisses”, de James Joyce. A “Ilíada” foi a obra que mais me fascinou na juventude.
Então, minha preocupação maior era fazer esses paralelos irônicos, tanto no plano literário quanto também no universo da televisão. A raiva do Aquiles conduz a ação na “Ilíada”; a raiva do Joca conduz a ação no meu romance. Mas os episódios e personagens narrados são frutos da minha imaginação. Alguns podem ter inspiração em fatos que eu presenciei ou de que ouvi falar, o que não anula o fato de que foram trabalhados por duas imaginações, a minha e a do meu personagem, que em realidade, e isso vai ficando cada vez mais claro no desenvolvimento do romance, é o real narrador da história.
O protagonista da história, o autor de novelas Joca, trata com certo desprezo o seu ofício. Numa festa, bêbado, ele discursa: “Meus amigos, a televisão é uma merda. Tudo que ela atinge vira merda. (…) Escrevo para televisão porque gosto de dinheiro”. Você compartilha desta visão do protagonista do seu romance?
Quando comecei minha carreira de escritor, a televisão era muito mal vista nos meios literários, especialmente os de esquerda. Quem rompeu com isso foi o Dias Gomes. Ele dizia que a televisão oferecia tudo aquilo por que o teatro popular lutou: o acesso ao grande público. Com o passar do tempo e o sucesso avassalador da televisão no Brasil, esta discussão arrefeceu. E a partir de um certo momento houve mesmo uma inversão: as novelas passaram a ser estudadas na universidade.
Essa questão permaneceu na cabeça de alguns escritores de televisão, entre eles, o meu personagem. Bêbado, ele soltou a frase que você reproduziu. De qualquer forma, a contradição que ele vivencia é histórica. Digo mais, faz parte da história literária universal.
Eu trabalho na televisão há mais de 30 anos e tenho uma visão crítica em relação a ela. Você já deve ter lido declarações minhas a respeito. Por exemplo, acho excessiva a quantidade de novelas na TV brasileira. Todo o nosso horário nobre é ocupado por elas, verdadeiro massacre. Um escritor não deve perder o espírito crítico.
Joca faz várias observações irônicas sobre o ofício de autor de telenovelas e também aos “truques” usados pelos autores. Parece um personagem infeliz, ou frustrado, com o trabalho que realiza. Querendo você ou não, o leitor pode imaginar que se trata da visão que o autor do romance tem do ofício ou o retrato de algum colega, não?
Meu personagem é um dramaturgo resmungão. Lembra daquele verso do Fernando Pessoa, “O poeta finge que é dor a dor que deveras sente”? Pois é, meu personagem resmunga tão completamente que chega a amaldiçoar aquilo que lhe dá prazer. Ahjahahahahah
A vida de um autor de novela nos anos 1990 é muito diferente de um hoje? O que mudou?
Há alguns anos atrás, eu achava que as novelas perderiam sua relevância no Brasil. Não aconteceu, pelo menos de modo significativo. Talvez a única mudança seja uma pequena abertura para novos autores e uma maior interferência no trabalho do autor.
No final de 2017, você publicou uma foto de Roberto Marinho nas suas redes sociais dizendo que a principal razão do sucesso da Globo deve-se ao fato de que Marinho e seus filhos “nunca se meteram nas novelas”. Foi um comentário pensando na Record, onde você trabalha?
Naquele momento, houve um clamor muito grande por causa de interferências numa novela bíblica. Mas tenho ouvido, a boca pequena, reclamações de interferências em todas as emissoras e nas produtoras pequenas.
Com o avanço da produção independente no país, parece que está acontecendo um movimento perverso de tentar diminuir a importância do autor-roteirista. Então lembrar o exemplo do Roberto Marinho é oportuno, porque a Globo deu certo, fundamentalmente, porque soube valorizar o autor-roteirista.
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