MEU PARCEIRO E MESTRE DIAS GOMES

Dias Gomes e Marcílio Moraes

Algum tempo atrás fui convidado a dar depoimento sobre o Dias Gomes. É para um livro coordenado pelo Gil Vicente Tavares, a ser lançado pela Universidade da Bahia. Embora tenhamos nos tornado amigos, minha convivência com o Dias se deu primordialmente na escritura de novelas e séries, e como a publicação do livro ainda demora, resolvi disponibilizar parte do meu texto, a referente a Roque Santeiro, em função da reprise da novela no Canal Viva, em novembro, segundo li, e também como homenagem ao meu amigo e parceiro, que faria 102 anos se vivo fosse no dia 19 de outubro. O texto sobre as outras novelas e séries fica para depois.

Roque Santeiro

Conheci Dias Gomes em 1985, apresentado pelo poeta Ferreira Gullar, a quem eu tinha ajudado a escrever uma minissérie para a TV Globo. Imagino que o Gullar elogiou meu trabalho, porque pouco tempo depois o Dias me convidou para ser colaborador em “Roque Santeiro”. A novela havia sido proibida em 1975, antes de estrear, e com o fim da ditadura, 1985, ia ser refeita.

Naquela época, existia a Casa de Criação, concebida, organizada e dirigida pelo Dias junto com o Gullar. Reunia roteiristas e escritores com a finalidade de assessorar a direção da TV Globo no que respeitava aos roteiros das novelas e séries. Não era um órgão decisório.

Funcionava numa charmosa casa antiga, bem perto da sede da Globo, no Jardim Botânico. Foi lá que encontrei o Dias pela primeira vez, para conversar sobre “Roque Santeiro”. Ele me disse que a novela era baseada numa peça que escrevera na década de 60, “O Berço do Herói”, e contou a saga da proibição às vésperas da estreia, em 1975. Com aquela ironia tão característica dele, me confessou que, aos 65 anos, não tinha mais muito saco para escrever novelas, “dar um ano de vida à TV Globo”, disse rindo (quem já escreveu novela sabe que é isso mesmo: consome um ano de vida, no qual você não tem tempo de fazer mais nada), e que por esta razão resolvera encarregar outro autor de tocar a obra a partir da sinopse e dos 51 capítulos já escritos em 1975. Seria o Aguinaldo Silva, com quem eu trabalharia como colaborador. E ele, Dias, supervisionaria. 

É fácil imaginar minha alegria com o convite. Naquela mesma tarde, ao chegar em casa, reli “O Berço do Herói”, que conhecia de muito tempo, e um ensaio do Décio de Almeida Prado sobre a peça, em que ele analisa o mito do herói, para me preparar para a empreitada.

O próximo passo foi ler os 51 capítulos que o Dias havia escrito em 1975. Neles, aprendi a escrever novelas e a cultivar profundo respeito pelo dramaturgo Dias Gomes. Eu gostava de novelas, mas confesso que tinha assistido a poucas até então. Outros interesses me absorviam e também, devo confessar, cultivava uns resquícios de preconceito. Ler aquela pilha de capítulos mudou minha cabeça. A facilidade com que os personagens surgiam nos diálogos ágeis, inteligentes, cheios de humor e tiradas imprevistas me cativou e maravilhou desde as primeiras páginas.  Fiquei surpreso como a história foi me envolvendo progressivamente, quase de forma obsessiva. Não conseguia parar de ler. Os personagens se desenhavam na minha cabeça com nitidez, como se os estivesse vendo. Melhor professor, eu não poderia ter tido.

E começamos a escrever. O Aguinaldo escaletava os capítulos e, no início, me dava um para escrever, por semana. Depois passou para dois. Ele fez uma pequena modificação na história, acrescentando um personagem, o Padre Albano, para se contrapor ao tradicionalista Padre Hipólito. Albano seria o Padre progressista, defensor da teologia da libertação, muito em voga naquela época. Foi a única modificação relevante inserida nos 51 capítulos, que foram ao ar praticamente iguais aos que o Dias tinha escrito, em especial os primeiros 30 ou 40. Depois, como é natural, as modificações foram aumentando. O primeiro que escrevi foi o 49, se não me falha a memória, com algumas cenas da primeira versão já prontas.

A esta altura, a novela tinha estreado com um sucesso gigantesco, que ninguém pôde imaginar antes. Pelo contrário, teve gente que duvidou que desse certo, como o Daniel Filho, na época diretor de dramaturgia da emissora.

O Aguinaldo e eu nos reuníamos com o Dias regularmente e algumas vezes também com os diretores, Paulo Ubiratan, Gonzaga Blota, Marcos Paulo e Jaime Monjardim. Com o Dias, o papo era sempre muito bom, divertido e instrutivo. Ele não interferia quase nada e a relação dele com o Aguinaldo era tranquila e colaborativa. Mais para o meio da novela é que isto mudou, o que relato adiante.

Ainda no início, não lembro exatamente em que altura dos trabalhos, foi incorporado o Joaquim Assis, também como colaborador, vindo da Casa de Criação, um ótimo profissional e excelente pessoa e amigo, que muito contribuiu para o bom desempenho da equipe.

Não posso falar de como começaram os desentendimentos entre o Aguinaldo e o Dias, porque só chegaram a ser tratados nos nossos encontros quando o clima entre eles já estava totalmente deteriorado. Eu e o Joaquim percebíamos que alguma coisa não ia bem, mas não podíamos imaginar que tivesse tal gravidade. Um exemplo que dá bem a medida do nosso estranhamento, foi o fato de, um dia, o Aguinaldo nos pedir – estávamos ali pelo capítulo 110/120 – que, a partir daquele momento, assinássemos os capítulos que escrevêssemos. Por que, não foi esclarecido. Até aquele momento, os capítulos seguiam sem identificação para o Dias ler e encaminhar para a produção.

Este fato me favoreceu – quem me confidenciou foi o Ferreira Gullar – porque o Dias gostou do meu diálogo e dos meus capítulos. A propósito, conto um caso engraçado que ilustra bem o humor do Dias. Eu tinha bastante liberdade ao escrever os capítulos, estruturados pelo Aguinaldo. E eu costumava introduzir algumas cenas da minha cabeça, às vezes sequências inteiras. Naquela época, governo Sarney, o Ministro da Cultura era um mineiro chamado Pimenta. Um dos itens do programa dele era chamado de política da “broa de milho”, porque visava recuperar os valores tradicionais da cultura brasileira, dos quais a broa de milho mineira seria símbolo. Eu resolvi brincar com isto na novela. Criei uma cena em que o Professor Astromar (o que virava lobisomem) conversava com Roque Santeiro num bar sobre cultura, exaltando o valor do soneto e da broa de milho. Pois bem, alguns dias antes da cena ir ao ar, o Ziraldo, que era amigo e apoiador do Ministro, convidou o Dias para almoçar. Depois de muito rodeio, pediram que ele tirasse a gozação com a broa de milho da novela (não sei como souberam) porque ia pegar mal para eles. O Dias falou com o Aguinaldo e ficou sabendo que tinha sido eu que criei a cena. Me chamou na Casa de Criação e,  rindo muito, contou o que tinha acontecido. Não tirou a cena, claro, um gozador como ele jamais o faria.

O estrondoso sucesso da novela – chegava a dar 100 % de audiência, ou quase isto, o Brasil inteiro acompanhava e falava sobre ela – mexeu com os egos. O Aguinaldo dava entrevistas como autor da novela e responsável pelo êxito, o que, a partir de certo momento, começou a irritar o Dias. Em público ou em nossas reuniões, esta desavença não se mostrava claramente. Depois eu soube que nos bastidores e junto ao Boni, chefão da emissora naquela época, o clima emocional andava quente já há tempo.

Estávamos escrevendo os capítulos 150, quando, numa reunião de rotina, para discutir o encaminhamento final da novela, com previsão inicial de 162 capítulos, estabeleceu-se uma atmosfera de fato pesada. Posteriormente, vim a saber que, em encontro conciliatório mediado pelo Boni, o Aguinaldo havia concordado em devolver o comando da novela para o Dias, para que a finalizasse, como uma homenagem. O combinado era que, na reunião a que me refiro, o Aguinaldo anunciaria seu afastamento, mas tal não aconteceu. O clima ficou estranhíssimo, sem que eu e o Joaquim atinássemos com o que estava por trás.

Pouco dias depois, a emissora anunciava que o Dias reassumiria a novela, esticada para 214 capítulos. A partir daí, inconformado com o afastamento, o Aguinaldo desencadeou campanha de violentos ataques ao Dias pela imprensa, dizendo que a autoria da novela era dele, Aguinaldo, que o Dias era um usurpador e outras barbaridades. Não vou entrar nos pormenores, alguns bem desagradáveis, porque não interessa aqui. Só quero ressaltar a elegância e discrição com que o Dias, embora muito magoado, respondeu às agressões, no máximo se valendo da ironia, apesar dos injustos danos causados a sua imagem, naquela época.

Ao retomar as rédeas da novela, Dias manteve a equipe de colaboradores. (Eu não me senti de forma alguma comprometido com o Aguinaldo, ainda que durante todo o trabalho tenhamos tido uma relação gentil, profissional, sem problemas, primeiro porque havia sido convidado pessoalmente pelo Dias e, segundo, a briga deles não era assunto meu).

A descabida dúvida pela autoria de “Roque Santeiro”, espalhada na imprensa, possível pela falta de informação das pessoas – a Globo não se posicionou e não tem o costume de divulgar os textos das novelas – esta dúvida, como disse, foi alimentada por alguns anos, até que a divulgação da sinopse original da novela e de outros documentos, já depois da morte do Dias, encerraram a barafunda.

Foi a partir da reviravolta na condução da novela que minha relação com o Dias se estreitou. Passamos a nos reunir semanalmente numa simpática casa que o Dias possuía no Recreio dos Bandeirantes, naquela época bairro ainda relativamente afastado. Era a casa para fins de semana e férias. “Perto, mas parece que é longe”, o Dias costumava dizer. Ele já tinha casado com a Bernadete, passado o luto pela primeira mulher, Janete Clair, falecida em 1983, que o tinha afetado profundamente, conforme me relatou.

A decisão de esticar a novela – embora previsível, com todo aquele sucesso – nos pegou de surpresa, inclusive o Dias. A história já estava armada para acabar em mais dois blocos. Foi necessária uma ginástica dramatúrgica para retardar o desfecho e evitar barriga. Seriam mais de 50 capítulos adicionais. Eu e o Joaquim ficamos preocupados, mas o Dias, com a experiência que tinha, não se abalou. E aprendi nova lição da dramaturgia de novelas.

Escaleta, para quem não sabe, é a estrutura, o resumo do capítulo que se vai escrever. Geralmente, o titular da novela faz as escaletas que são desenvolvidas, dialogadas, mais precisamente, pelos colaboradores. O Aguinaldo era excelente nisso, nos dava escaletas muito bem estruturadas e detalhadas. O Dias, não, porque sempre tinha trabalhado sozinho, como era comum naquela época. Ele nos passava um resumo do capítulo com os principais acontecimentos, deixando a estruturação a nosso cargo. Falando dos primeiros tempos, o Dias me contou que, quando eram praticamente apenas a Janete e ele a escrever as novelas da Globo, uma atrás da outra, eles eventualmente trocavam. Por exemplo, um estava muito cansado e pedia ao outro para escrever os primeiros capítulos da nova. Considerando as diferenças de estilos entre eles, era tarefa para supercraques.

Em clima ameno e divertido, chegamos ao final da novela e se colocou a questão de como terminar a história. O Dias era muito aberto às sugestões da equipe. Eu então me lembrei do ensaio do Décio de Almeida Prado sobre a peça “Berço do Herói”, em que ressalta a crítica à figura do herói, e me atrevi a escrever algumas considerações que levei ao Dias, defendendo que não tinha sentido, depois de 200 e tantos capítulos descontruindo a figura do herói, no final, reforçar o mito heroico. Ele concordou e,  numa reunião, eu o ajudei a elaborar aquele final, de tom fortemente irônico, que parodia o filme americano “O Homem que Matou o Facínora”. Porcina não seria “redimida” pelo amor de Roque Santeiro, ficando com aquele que de fato tinha a ver com ela, Sinhozinho Malta. E Roque desapareceria num avião.

A partir daí, minha amizade e parceria com o Dias se estreitou. 

                                                                                                          Marcilio Moraes