Novelas brasileiras > tema em discussão

Mais uma entrevista que resgatei dos meus arquivos, concedida há quase três anos. Como não foi aproveitada, que eu saiba, disponibilizo. É interessante porque me deu oportunidade de desenvolver, com alguma profundidade, o que penso da telenovela no Brasil. Não ponho o nome de quem entrevistou porque não sei se a pessoa gostaria. Mas é só falar que eu identifico. Marcilio Moraes.

A entrevista

P- Você estreou, em 1985, como roteirista de novela com Roque Santeiro. O seu  mais recente trabalho foi Ribeirão do Tempo, de 2010. O que mudou (se mudou) na sua forma de trabalhar como autor de novelas durante este período?

R. Eu diria que, por um lado,  muita coisa mudou; por outro, houve pouca transformação.

Por exemplo, naquela época a gente ainda usava máquina de escrever. A diferença para o computador de hoje é a revisão. Porque, na máquina, alterar uma fala já escrita implicava em reescrever toda a página. Isso na rotina de escrever dezenas delas por dia. Ou seja, valia o que saía de primeira. Com o computador, é viável fazer uma revisão no texto. No entanto, ironicamente, quase sempre eu tenho a impressão de que o que sai de primeira é melhor.

Outra diferença é que os capítulos eram menores. 25 páginas era o padrão. O capítulo não excedia 45 minutos. Com um mínimo de 36 minutos já dava para resolver. Hoje os capítulos têm pelo menos 50 minutos, não raro, 60.

Naquela época ainda existia a Censura Federal. Hoje não mais. Em compensação, hoje temos a Classificação Indicativa, que em alguns casos pode ser mais restritiva do que a velha censura.

Em termos de dramaturgia, talvez hoje haja um ritmo mais acelerado. Mas não muito, porque o gênero é conservador. Não dá para acelerar muito a ação numa história que precisa ser contada em 200 capítulos.

No que respeita à discussão de problemas, à proposição de debates, etc, com algumas exceções, não vejo muita diferença. Em geral, a temática proposta nas novelas é pouco substancial, do ponto de vista humano, social, político, etc. Tenho até a impressão de que,  naquela época,  as novelas eram mais instigantes do que hoje.

A principal diferença daquele tempo é que hoje não existe mais apenas uma emissora dominando em termos absolutos o panorama da televisão. O consistente investimento da Record em teledramaturgia, nos últimos anos, mudou o quadro.

Hoje já é possível desenvolver uma dramaturgia diferenciada dos rígidos padrões globais. Um projeto de novela como o de “Vidas Opostas”, por exemplo,  que escrevi na
Record em 2006,  não daria para emplacar na Globo. No entanto, depois do extraordinário sucesso que a novela fez, a própria Globo foi obrigada a incorporar situações, personagens, tramas, etc, que antes rejeitava liminarmente. Ou seja, atualmente existe um pouco mais de maleabilidade e troca de influências, sem contar a abertura do mercado de trabalho para autores, diretores, atores, técnicos, etc.

 

P- Como você definiria as novelas do terceiro milênio?

R. Sem querer ser pessimista, eu diria que as novelas do terceiro milênio, na sua imensa maioria, simplesmente continuam as do segundo. O gênero novela tem limitações muito fortes. É da sua natureza ser conservador.  Como diz Umberto Eco, a função do folhetim é consolar. Ora, não se pode ser muito ousado num gênero que, em última análise, precisa consolar o espectador.

Acresce a isso a exigência comercial, dia a dia mais impositiva, na medida em que as produções se tornam cada vez mais caras. O que leva, por parte dos executivos, ao medo do risco, ao apego às fórmulas que já deram certo.

Só o que pode romper essa inércia estagnante é a concorrência. Para que o Brasil tenha uma televisão verdadeiramente inovadora e instigante precisamos de pelo menos três grandes redes concorrendo entre si. Aí sim, as forças criativas da dramaturgia nacional poderão se desenvolver na plenitude.

 

P- A base da novela é o folhetim do século XIX. No terceiro milênio é diferente? Como seria o “folhetinesco” atual?

R. De fato, foi no século XIX, com o advento da imprensa diária, que se estabeleceram os elementos ficcionais básicos da escritura de um folhetim: os amores impossíveis, os vilões terríveis, os mistérios, os conflitos da ascensão social,  as vinganças, etc. No que respeita ao fundamental, como se vê, a coisa não mudou muito, daqueles tempos para hoje.

A diferença mais significativa entre o folhetim inicial, escrito, e o folhetim televisivo talvez seja o maior condicionamento comercial que as obras sofrem hoje, o que limita muito o universo temático do novelista.

Muitos folhetins do século XIX abordavam simpaticamente os movimentos renovadores e mesmo revolucionários, o que hoje talvez fosse complicado.

 

P- Qual seria a função, se alguma, das novelas brasileiras agora? Você pensa nisso ao pensar numa história, ou seja, trabalha com a ideia da tua novela tenha ter um papel na sociedade, além, claro, de entreter?

R. A função básica de todo folhetim é entreter e consolar, como já acentuei. Apesar desta limitação, o folhetim pode incitar a discussão de problemas sociais, políticos; pode denunciar injustiças; pode acompanhar a tradição dramatúrgica do “ridendo castigat mores”, ou seja, criticar os costumes, etc.

Quando escrevo, eu penso sim nessas funções que uma novela pode exercer, além do meramente consolatório.

A questão é o quanto se consegue ser crítico e instigante numa obra em que os interesses empresariais e comerciais pesam tanto, hoje em dia.  Além da Classificação Indicativa governamental, das pressões “politicamente corretas”, etc.

 

P- Para você, de que forma a internet, a flexibilidade na hora de assistir a um capítulo, por exemplo, influencia (ou não) a criação de uma novela?

R. Ao escrever uma novela, o autor tem sempre a preocupação de repetir, de tempos em tempos, as informações básicas. Porque o público é instável, nem sempre vê todos os capítulos e muita gente vai sendo incorporada à medida  que a novela se desenvolve ao longo dos meses.

Neste quadro, a disponibilidade dos capítulos fora do horário estrito da exibição poderia desonerar um pouco o autor das repetições e redundâncias. Mas não acredito que tanta gente assim recorra à internet, a ponto de acabar com esta necessidade.

De mais a mais, o espectador de novela sempre teve à disposição jornais, revistas, informativos, etc, dando conta do que aconteceu e do que vai acontecer na história. Ou seja, não há nada de muito novo neste aspecto.

 

P- Estamos em plena revolução virtual. A internet, entre muitas características, permite, por exemplo, que criadores conheçam, instantaneamente, a reação do espectador a suas tramas e personagens. O IBOPE, minuto a minuto, idem. Como isso afeta a produção das novelas de hoje?

R. Um autor experimentado de novelas antevê as reações do seu público desde o momento em que começa a elaborar a sinopse. Toda a produção – elenco, cenografia, locações, etc – vai ser montada atendendo a esta antevisão. Claro que o autor pode errar e a reação do público não ser aquela que ele previu. Mas aí foi um erro, que precisa ser corrigido. Para esta correção é que as redes sociais da internet, o minuto a minuto e outros recursos tecnológicos vão ser importantes. Ou seja, quando o autor se equivoca sobre a aceitação da sua trama, a tecnologia de hoje lhe fornece mais recursos para tentar recuperar o público, num prazo mais curto.

Mas não se pode dizer que essa tecnologia altere a escritura e a produção das novelas.  

 

P- E a explosão dos seriados americanos? Há alguma influência no ritmo de tais produções, na sua forma de escrever, especificamente, ou na produção atual de novelas brasileiras, em geral?

R. A invasão dos seriados americanos teve o grande mérito de mostrar ao público brasileiro que se pode ter uma teledramaturgia mais ágil que o costumeiro nas nossas novelas.

Minha esperança é que esta constatação seja entendida pelas direções das emissoras e as estimule a investir mais em outros formatos que não a novela. E também conscientize os autores-roteiristas de que não basta acelerar um pouquinho mais o ritmo das novelas e achar que assim estão fazendo face ao sucesso dos seriados americanos.

O que nós precisamos no Brasil é de uma teledramaturgia diversificada, em termos de formatos. E não ficar tentando elaborar pratos diferentes com a mesma receita de sempre.

 

P- Quem é o atual espectador de novelas? O que ele difere do espectador do milênio passado?

R. A meu ver, o espectador é basicamente o mesmo. Fala-se muito no advento das classes C, D, E. Mas a maior parte dessa gente já tinha televisão e assistia as novelas. O que ocorreu é que essas camadas da população têm hoje em dia maior poder de consumo, logo, são mais consideradas do ponto de vista comercial.

No que respeita à teledramaturgia, nas décadas de 70 e 80 ocorreu fenômeno semelhante. Em 70 havia 5 milhões de televisores no país. Em 90, já eram 30 milhões. Por aí, dá para avaliar a quantidade de gente que passou a telespectador.

O que eu vejo hoje, mais como um sintoma do que uma realidade, é que as novelas têm incorporado, no universo ficcional, camadas da população antes excluídas. Antes, os pobres eram sempre tratados de forma folclórica, apresentados como engraçadinhos alegres. Hoje já há algum constrangimento em construir personagens desta forma.

 

P- Para onde as novelas brasileiras estão caminhando?

R. A meu ver, para nenhum lugar muito diferente do caminho já percorrido, se predominarem as tendências majoritárias de hoje em dia. Há possibilidades de transformação,  mesmo considerando o conservadorismo intrínseco do gênero. Mas para isso é preciso que haja, antes de tudo, concorrência, muita concorrência.

Além disso, também tenho a  expectativa de que, daqui para frente,  as novelas cedam um pouco de espaço para novos formatos. Formatos nos quais, aí sim, é possível haver experimentação em maior profundidade.

 

P- As novelas brasileiras são exportadas para dezenas de países. O que torna a teledramaturgia do Brasil tão específica e bem-sucedida?

R. As novelas brasileiras são de fato muito boas. A Rede Globo vem demonstrando esta verdade há décadas. Apesar disso, acho que é preciso um pouco de cuidado para não mitificar o tão alardeado sucesso das novelas brasileiras no exterior. Há que relativizar isso, para que não fiquemos alimentando ilusões de grandeza que, em última análise, acabam favorecendo a mesmice.

Vendo friamente, exportar novelas para o mundo inteiro não é privilégio do Brasil. Outros países da América Latina também são grandes exportadores, como o México, a Colômbia, a Venezuela, etc. Nós mesmos importamos muitas novelas desses países.

O que há de específico nas telenovelas brasileiras são seus aspectos internos. Ou seja, aqui são exibidas em horário nobre. Na verdade, ocupam todo o horário nobre nas emissoras mais bem sucedidas.

Isso leva a um maior apuro na produção e a abordagem de temáticas mais sofisticadas, o que propicia um produto melhor que os “genéricos” de novela em geral produzidos por aí.

Então se pode dizer que a novela brasileira tem uma qualidade diferenciada.

Apensar disso, na maior parte dos países, as novelas brasileiras são exibidas no horário da tarde, junto com as outras de produção mais simples e careta.

 

 

P- Vendida como “a nova novela das onze”, “O Astro” pode abrir um novo horário na dramaturgia da Globo. O produto “novela” tem ainda fôlego para ganhar (ou recuperar, pois antigamente tinha novela das 22h!) mais espaço na programação das televisões brasileiras?

R. O público brasileiro é viciado em novelas. O fato de existir atualmente um número tão grande de novelas no ar é um sintoma do conservadorismo arraigado do brasileiro e da acomodação e falta de ousadia dos executivos das emissoras.  

Acho uma lástima que a Globo inaugure um novo horário de telenovelas, em detrimento da linha de experimentação em dramaturgia que vinha adotando. Ao invés de vários produtos que valorizavam o talento e a imaginação dos autores-roteiristas e sacudiam a preguiça do público, o que esse novo horário traz é mais do mesmo, ou seja, mais novela. Ainda por cima, um remake. Convenhamos, exibir novelas de cinco da tarde à meia-noite é uma gigantesca limitação do horizonte dramatúrgico.

 

P- Atenção: esta pergunta é uma provocação assumida!: remakes como (ou novelas inspiradas em) Ciranda de Pedra, Ti-ti-ti, Plumas e Paetês e Uma Rosa com Amor (no caso do SBT) seriam uma mostra da falta de imaginação ou medo das emissoras de apostar em novidades?

R. Exatamente. Como já disse, com raras exceções, tem faltado ousadia e visão aos diretores das emissoras. Novelas já são, por natureza, repetitivas. Remakes são a repetição do repetido. O público brasileiro merece mais.

 

P- O formato de 60 capítulos inaugurado por O ASTRO, pela TV Globo, seria, em sua opinião, uma indicação para onde as novelas estariam caminhando?

R. Não. Esta novela de 60 capítulos é uma exceção. Novelas são enormes pela própria lógica econômica. Na medida que vai sendo exibida, a novela tende a ter seus custos diminuídos e seu faturamento aumentado. Qual o empresário que vai abrir mão de mais lucro?

Ou do próprio lucro. Veja o exemplo recente de “Insensato Coração”. Nos quatro primeiros meses teve audiência baixa. Depois começou a crescer. E aí ocupou todos os espaços na imprensa, o número de merchandisings cresceu, certamente o intervalo comercial ficou mais caro, etc. Se tivesse tido apenas 60 capítulos teria entrado no rol dos fracassos do horário. Com 180 vai acabar como sucesso. E este não é um caso isolado. Geralmente, é assim que a banda toca e a novela rola.

 

P- Falando em duração de novela… Você escreveu, no terceiro milênio, três novelas de sucesso na Record. Se não me engano, as três foram prolongadas, incluindo a que marcou sua estreia em tal emissora: Essas Mulheres que bateu recorde de audiência na Record na época. Vidas Opostas teve 240 capítulos e fez história ao marcar 25 de IBOPE, com picos de 29 no último capítulo… E Ribeirão do Tempo durou 250 capítulos no ar e com a excelente média de 13 pontos. Tudo isso, para perguntar: Qual é o preço físico, psicológico, pessoal, de escrever novelas?

R. Esta é uma lei das telenovelas: toda novela bem sucedida tende a ser esticada.

Agora vamos corrigir algumas informações da pergunta. “Essas Mulheres” foi uma novela muitíssimo bem recebida,  em termos de crítica. A audiência, pelo menos até a metade, não foi grandes coisas. “Vidas Opostas” sim obteve um gigantesco sucesso de público e também de crítica, ganhou o Troféu Imprensa e outros. “Ribeirão do Tempo” foi bem mas não atingiu o sucesso de “Vidas Opostas”.

Sobre o preço de escrever novelas, lembro que, quando comecei, o Dias Gomes me dizia que não tinha mais vontade de escrevê-las porque, naquela altura da vida dele – tinha a mesma idade que eu hoje, sessenta e muitos – dar um ano de vida para a emissora era muito.

O custo de uma novela, para o autor, é esse: um ano ou mais de vida. Vai tudo para o espaço: lazer, vida pessoal, amigos, leituras, vícios, etc. É só escrever e pensar no que vai escrever.

 

P- As novelas são o grande trunfo das TVs brasileiras. Alterar horário de exibição, encurtar, esticar capítulos e tramas… Como harmonizar criação com as regras da guerra pela audiência?

R.  A principal característica da novela, tal como se faz no Brasil, é ser escrita ao mesmo tempo em que é produzida e vai ao ar. Isso exige do autor uma versatilidade criativa, uma capacidade de improvisação e um domínio da dramaturgia que o capacitam a enfrentar todos esses desafios que você citou, como mudança de horários, alteração do tempo dos episódios, aumento do número de capítulos, etc.

Ou seja, quem escreve novelas tem que conhecer e dominar as regras do jogo e os obstáculos a superar, especialmente se está numa emissora concorrente daquela que detém a posição preponderante no mercado.

 

P- E qual é o barato de escrever novelas?

R. O grande barato, para o autor, é escrever ao mesmo tempo em que a novela vai ao ar. A resposta imediata que daí advém é única em dramaturgia. Nenhum outro gênero oferece esta adrenalina para o escritor.

E o sucesso que as novelas fazem no nosso país dão ao autor um prestígio e uma visibilidade que escritores de outros gêneros dificilmente conseguem.

 

P- Tudo começa a partir do roteiro. Dá medo escrever novelas? Você sente a responsabilidade de estar movimentando uma máquina milionária de dinheiro, investimento, mão de obra…?

R. Eu, por mim, devo admitir que sempre tenho medo. Não apenas quando estou planejando a sinopse mas em cada capítulo. Todos os dias, antes de começar a escrever, me dá um frio na barriga, mesmo quando a novela já está no ar há meses. Sempre me vem aquela aflição: será que consigo inventar o capítulo de hoje?  Sei que é um receio insensato, mas ele está lá, toda manhã.

Porque é como você disse. Sem o  texto, sem o papel escrito, nada acontece, não apenas na televisão mas em todo o audiovisual. Se o autor atrasa o capítulo, todo mundo fica lá batendo cabeça, esperando, sem saber o que fazer.

É uma responsabilidade muito grande. O autor sabe que um investimento de dezenas de milhões de reais depende da sua cabeça. Isso gera ansiedade, sem a menor dúvida.

 

P- Há algum aspecto que você gostaria de comentar sobre a atual produção de novelas?

R. Quero deixar claro que, apesar do tom crítico, não sou contra as novelas. Inclusive porque em grande parte tenho vivido de escrevê-las. Acho é que a televisão brasileira não pode continuar só produzindo novelas, como se fosse o único formato possível. Precisamos abrir os horizontes. Talentos e meios de produção não faltam. Falta é espaço nas redes, todo ele ocupado por novelas.  Marcilio Moraes.foto_marcilio