O País do Folhetim

Marcílio Moraes

Marcílio Moraes

Mexendo no baú, encontrei este artigo que publiquei no Estadão, no primeiros anos do milênio (como passa o tempo, nunca imaginei disse isto). Continua atual, pelo menos em parte. Confiram aí:

“Ao fazer uma brilhante analise do cinema e da televisão no Brasil , o cineasta Ugo Giorgetti declarou à revista E, do SESC – SP que  “está mais do que na hora de o governo entrar  no conteúdo das televisões”. Concordo com Ugo quanto à necessidade de intervir, mas discordo que deva ser no conteúdo. Tem que ser na “forma”, mesmo porque falar em mexer no conteúdo deixa margem às acusações de autoritarismo. Também porque devemos tomar cuidado com algumas avaliações sobre televisão que parecem óbvias e são  problemáticas. Refiro-me àqueles programas considerados “baixaria”, como “Ratinho” e congêneres. Quem os assiste é o povão de mais baixa renda. Esses programas atendem aos interesses do seu público; ou, analisando de outro ângulo, os chamados programas “de qualidade” nada lhe dizem. Como se estabeleceu que os programas “de qualidade” geralmente são os da Globo, que detém o monopólio dos investimentos publicitários – a programação dela persegue o gosto e a visão do público com poder aquisitivo – , corremos o risco de, com o fim daqueles programas de “baixarias”,  acrescentar mais uma  exclusão aos já excluídos. Melhor deixar que as emissoras exibam o conteúdo que quiserem, e voltarmos a atenção para a forma em quê a televisão brasileira está estruturada.

Primeiro vamos tomar forma no sentido de “modelo”. Nosso modelo de televisão mostra, de um lado, uma emissora que consegue 65% do share da audiência no horário nobre e 80% dos  investimentos em televisão no país; de outro, as demais emissoras, disputando o que sobra.
Agora tomemos forma no sentido usual no meio televisivo de “formato”. O formato de programa que sustenta aquele modelo referido acima é a telenovela. Não vou entrar na questão de como a Globo adquiriu o inegável grau de excelência que apresenta e tornou dominante no país seu padrão estético. Vou me ater ao papel da telenovela, porque aí é que está o nó que atravanca as tentativas de modificação no panorama audiovisual. Reitero que nada tenho contra a telenovela. Passei vinte anos na Tv Globo escrevendo telenovelas, ganhei dinheiro com elas, e é provável que ainda volte a escrever, porque é divertido e o público gosta . O problema é que, tanto quanto a Globo, a novela adquiriu uma presença na vida nacional muito acima do razoável, muito além do saudável. Parece que o país se rendeu à novela. A intelectualidade  não se peja em reverenciar a novela (lembro que na década de 70 o Dias Gomes era atacado por escrevê-las). A universidade trata a novela como manifestação superior de cultura. O país se ufana do sucesso das novelas no exterior (sem atentar para o fato de que na maioria dos países é um produto segmentado, exibido à tarde, para donas de casa).
Trata-se de um perigoso equívoco. A função do folhetim, como diz Umberto Eco, é consolar. Como tal, a novela não problematiza nada, apenas consola. A técnica folhetinesca  consiste em dar ao público precisamente o consolo que ele precisa. Nada contra. Não serei eu, que além de noveleiro presido a Associação dos Roteiristas – ARTV, que vou falar mal da cultura de entretenimento. Quem não precisa de um consolo de vez em quando? O problema é o exagero. Um país não pode ter como manifestação cultural mais importante o folhetim. Nosso público leitor é de 4 milhões de pessoas numa população de 180 milhões. Fica todo mundo vendo novela, falando de novela, tomando novela como referência. Nos capítulos finais, os cinemas se esvaziam, os teatros ficam às moscas, os restaurantes não têm ninguém.
E achamos natural, sem nos dar conta de que isso vai contaminando a vida do
país. Lula foi eleito como um personagem de folhetim. Além disso, a novela é avara, tanto por  não deixar espaço na grade para nenhuma diversidade, como para o mercado de trabalho. A Globo exibe novelas de 5,30 da tarde às 10,30. De segunda a sábado. Ah sim, tem o Jornal Nacional. Mas o Jornal Nacional, em parte,  também é estruturado segundo os princípios do folhetim: sensacionalismo, exacerbação das emoções, cuidado de não exibir cenas chocantes,  reportagens consolatórias com  pessoas que conseguiram realizar seus sonhos, etc,  em detrimento da perspectiva crítica.
Sobra o quê nesta grade de programação? Quando é que um filme brasileiro
poderá ser exibido ás oito horas da noite na televisão? – aí sim, o público
poderia avaliar o cinema brasileiro. No esquema atual, nunca. Nem filme nem outros formatos de produção dramatúrgica.
E o mercado de trabalho? Em que pese o fato da Globo, felizmente, ser a empresa que mais contrata artistas e técnicos, a alardeada maior produção de conteúdo nacional em horário nobre é conversa fiada. Novela não são 200 programas. É um programa que dura duzentas horas e se estende por 8 meses, empregando os mesmos autores, diretores, atores etécnicos… Se um dos horários ocupado com novela exibisse outro tipo de dramaturgia nacional, imaginem a abertura que seria!
O modelo de televisão hoje está assentado nas novelas. As concorrentes da Globo, quando heroicamente se dispõem a concorrer, pensam em exibir novelas (porque não têm outra alternativa). Se não as produzem, compram no México, na Venezuela, na Argentina…O Brasil é hoje um país de folhetim. Não resolvemos nossos problemas, mas sabemos nos consolar. E ficamos eternamente esperando a punição dos vilões que assolam o país e a redenção dos bonzinhos, sem final feliz à vista.
Se esse esquema mudasse, o dinheiro investido nas televisões não desapareceria. A televisão vive de publicidade, que existe porque os agentes econômicos têm que anunciar, é assim o capitalismo. Os bilhões que a televisão movimenta continuarão a ser movimentados num modelo diferente. O que podem migrar são as audiências, hoje cativas de uma programação monocórdica. A diversidade vai beneficiar o grande público e amplos setores dos produtores culturais, aumentando a oferta de programas e o mercado de trabalho dos artistas e técnicos.

 

Marcilio Moraes, 60, é dramaturgo e romancista. No teatro, ganhou prêmio da APCA. Na televisão, escreveu Roque Santeiro, Roda de Fogo, Noivas de Copacabana, etc. Recentemente lançou o romance “O Crime da Gávea”. É presidente da Associação dos Roteiristas – ARTV