Por que ‘Roda de Fogo’, do fim da ditadura, seria novela impensável na era Bolsonaro

Trama mata o herói, escancara crítica à tortura e discute corrupção com elenco maduro em intriga de ares noir

Úrsula Passos

Em 24 de outubro de 1986, Décio Pignatari assinava na Ilustrada o artigo “Roda República”. O poeta havia visto pela primeira vez um capítulo do “novo furor tele-ideológico da Terra dos Papagaios”. Ele se referia à novela “Roda de Fogo”, escrita por Lauro César Muniz e Marcílio Moraes, que estreara dois meses antes na Globo. Nasci um ano depois, em agosto de 1987, e na casa de meus avós as novelas eram obrigatórias do fim da tarde à hora de dormir. Foi com eles que me tornei uma noveleira. Na pandemia, sem novelas inéditas e com reprises insossas, noveleiros nos voltamos ao catálogo do Globoplay.

Desde abril está lá “Roda de Fogo”, que tem despertado o interesse dos mais jovens, que assistem a ela pela primeira vez, e daqueles que, agora, ganham uma oportunidade melhor para a rever do que a de 1990, quando seus 179 capítulos foram retalhados em pouco mais de um mês de Vale a Pena Ver de Novo, na época da Copa do Mundo de futebol.

Ao dar o play, já se nota que há algo de estranho no reino desta novela. Nada de dondocas disputando um homem com a mãe, fartos cafés da manhã no ensolarado Leblon, discursos com lições de moral. Ela é grave. É cheia de jogos de claro e escuro como em pinturas. Homens na faixa dos 50 anos estão sempre de terno e gravata segurando copos de uísque, e a morte do protagonista é certa. O primeiro capítulo começa com um voo sobre Brasília e a primeira coisa dita, por uma voz feminina, é “presidente da República”.

O país vivia, em 1986, a saída da ditadura, o baixo-astral da morte de Tancredo Neves, que levou à presidência José Sarney, e a expectativa pelas Diretas, que viriam em 1989.

A voz do início é de Carolina, interpretada por Renata Sorrah, que pretende fazer de seu marido, o riquíssimo empresário Renato Villar, o presidente do Brasil. Renato, vivido por Tarcísio Meira, começa como um vilão, destrata empregados, faz pouco caso da família, não reconhece um filho que teve no passado com outra mulher, é cheio de si e voluntarioso. Também está metido em tramoias, num grande caso de corrupção, num assassinato e em ameaças a um juiz.

Então eis que o patife descobre um angioma cerebral que o vai matar em meses e acaba virando a chavinha. Passa a ser um homem bom, que trata funcionários com gentileza, resolve ferrar com os parceiros de falcatruas e se permite viver um grande amor. Quando ainda era um ser abjeto, no afã de se livrar do escândalo financeiro, Renato se apaixonou por Lúcia Brandão, a juíza do processo que investiga o caso de corrupção, vivida por Bruna Lombardi.

“Vagamente, consegui perceber”, diz Pignatari em seu texto, “que estamos assistindo à telenovela simbólica da morte da ‘Velha República’ e da parturição da ‘Nova’.” Por estar assistindo a “Roda de Fogo” naquela segunda anterior à sexta em que o artigo foi publicado, conta o concretista, tomou conhecimento da estreia de um novo programa na TV Cultura, o Roda Viva. “Puxa vida, como a televisão é rápida! Da roda de fogo à roda viva, chegamos rapidissimamente à ‘Nova República’.”

O fim dos anos 1980 foi pródigo em novelas metaforicamente ou claramente políticas, como “Roque Santeiro”, de 1985, e “Salvador da Pátria”, de 1989. O tom se manteve ainda na década seguinte pelo menos até “O Rei do Gado”, de 1996, que abordava o Movimento Sem Terra. Mas praticamente desapareceu depois, quando ganharam o proscênio questões sociais e dilemas tecnológicos, como a clonagem, câncer e preconceitos contra idosos e deficientes.

“Roda de Fogo” foi a primeira novela a nascer da Casa de Criação Janete Clair, um grupo, que incluía o poeta Ferreira Gullar, voltado a ter ideias para novelas e seriados e que era orientado por Dias Gomes. Daniel Filho, à época diretor artístico da Globo, dividindo decisões com Boni, conta que a ideia não era nova, vinha de núcleos semelhantes nos estúdios do cinema americano nos anos 1940 e 1950. Era novidade, porém, no Brasil, e em novelas, tradicionalmente escritas por um autor. “Era uma tentativa de ter autores juntos dando ideias, uma sala com os melhores autores do país”, diz ele, em conversa ao telefone.

“Eu tinha sido contratado para fazer ‘Roque Santeiro’, renovei o contrato e não fazia parte da Casa de Criação”, conta Marcílio Moraes. “Havia essa proposta da Casa, a primeira ideia era a de um sujeito poderoso muito mau que descobre que vai morrer e muda de comportamento. Era o ponto de partida”, diz. Ele foi chamado para escrever a sinopse.

Lauro César Muniz, que àquela altura era um autor experiente, foi convidado por Dias Gomes, conta, para assumir a empreitada. “Marcílio tinha uma sinopse. Com minha experiência e o talento dele, fizemos a novela”, diz Muniz. “Para mim é uma novela coletiva, não a fiz sozinho como as que costumava fazer”, afirma.

O fato de que Renato está marcado para morrer é um segredo conhecido apenas pelo protagonista e pelo público, mas é o que movimenta a trama. Os demais personagens não sabem das motivações da reviravolta no comportamento do empresário. Mas há ainda um outro segredo, conhecido pelo grupo de Renato, mas que pode pôr em risco o mocinho-vilão. Quem matou Celso Rezende, o homem vivido por Paulo José e que detinha as provas do esquema de corrupção, assassinado logo de início? “Era um conflito que chama a atenção logo nos primeiros capítulos. Colocar o Paulo José para morrer ali é quase como a Janet Leigh morrer nos primeiros minutos de ‘Psicose’”, diz Daniel Filho.

Na volta da novela ao streaming ficou faltando o capítulo 90, que a Globo diz não ter localizado. Moraes publicou em seu site —marciliomoraes.com.br— o roteiro do trecho extraviado, e, assim, podemos ver que perdemos uma boa conversa entre Renato e Carolina sobre seu divórcio. O autor tem um vasto acervo em sua casa —que disponibiliza a pesquisadores e que procura uma instituição que o possa guardar.

Sabendo que vai morrer, Renato decide reconhecer o filho, Pedro, vivido por Felipe Camargo, registrado pelos avós maternos. Ele é um rebelde, mete um taco de golfe na cabeça de um sujeito na estrambólica festa de 50 anos de Renato e veste sempre um macacão branco, com ares de Alex do “Laranja Mecânica”, filme de 1971. Muniz diz que a semelhança não foi proposital, mas diz gostar muito do longa de Stanley Kubrick e que paixões de cinema e livros podem transparecer.

A mãe de Pedro é Maura, uma guerrilheira presa pela ditadura, solta com uma mãozinha dos contatos de Renato, e que vive exilada na Itália tratando os traumas das torturas que sofreu. Eva Wilma faz o papel e só aparece ali por outubro, justo a tempo de ser vista por Pignatari.

O cadáver da ditadura mal tinha esfriado e “Roda de Fogo” já servia no jantar brasileiro uma guerrilheira torturada que mais tarde reencontra seu torturador e um general linha-dura caricato, Hélio D’Ávila, tio de Carolina, vivido por Percy Ayres e que sempre repete “eu sou terrível”.

“Estávamos preocupados com a ditadura militar recente, amigos foram mortos e presos”, lembra Muniz. “Vendo de longe, dá uma outra dimensão da coisa, mas ali era o momento da redemocratização, a ditadura estava muito próxima”, diz Moraes, que nega, porém, ter sido pensada uma simbologia como a apontada por Pignatari. “Essa metáfora tão bem concertada não havia. Em arte tem dessas coisas, o público vê o que o autor nem sabe que estava fazendo. Você pode ver ali, sim, um renascimento, um reencontro com a vida. O que havia de explícito mesmo era a crítica”, diz. “O general [Hélio] era o Figueiredo, que tinha sido o último presidente e era parecido com aquele general grosseirão, amante de cavalos.”

“O Percy [Ayres] era meio parecido com Pazuello, não?”, brinca Daniel Filho. “Estava bem escalado.”

A oferta de novelas antigas no streaming, aliás, dá acesso a um retrato de época privilegiado, de quando a atração da faixa das oito era um dos principais produtos culturais do país. As novelas então pautavam discussões na sociedade e se inspiravam nela. Para o público de 2021, porém, fica um gosto amargo ao comparar aquele reflexo do Brasil de 1986 com a realidade em que vive e perceber que o país pouco mudou.

Ainda havia, àquela altura, a censura federal. Mas ela não encanou com menções a torturas ou com Hélio. “Se colocasse essa novela no ar hoje às 20h, ia dar mais bronca do que naquela época”, diz Moraes. “Com aquele general à la Heleno, falando de tortura.” O que incomodou a censura, que prosseguiu até a Constituição de 1988, foram menções à homossexualidade e a brochadas.

Marcílio Moraes guarda documentos que repassam à equipe da novela pedidos de cortes feitos pela censura. Em janeiro de 1987, eles foram feitos nos capítulos 124, 125 e 128, em cenas em que Tabaco reclama de estar sofrendo com impotência sexual. O personagem de Osmar Prado foi um dos grandes sucessos da novela. Seu núcleo era o alívio cômico da trama. Motorista de Renato, ele era um conquistador, passava cantada em várias mulheres e se desdobrava para manter o relacionamento com três noivas ao mesmo tempo.

Ainda no mesmo mês, houve corte no capítulo 138, num diálogo entre Mário Liberato e seu mordomo, Jacinto, em que ficava evidente a homossexualidade daquele. Interpretado por Cecil Thiré, Mário foi o verdadeiro vilão de “Roda de Fogo”, e a dobradinha que armou com Renata Sorrah ganhou destaque, chegando a roubar o protagonismo do casal romântico Renato e Lúcia.

Embora sugerida e nunca explicitada, a homossexualidade de Mário é evidente. Cinco anos antes, tinha ido ao ar “Brilhante”, novela de Gilberto Braga em que Dennis Carvalho —diretor de “Roda de Fogo”— vivia o homossexual Inácio, mas até hoje a centralidade na trama e a vilania cheia de estilo, regada a xerez e porto, de Mário Liberato não encontraram concorrente. Nem mesmo no Félix de “Amor à Vida”, de 2013.

Houve ainda, em dezembro de 1986, uma outra curiosa tentativa de censura a “Roda de Fogo”. Um advogado de 74 anos de Miracema, no interior fluminense, pediu na Justiça a proibição da exibição da novela. Isso por ferir a dignidade e constituir “achincalhe ao Poder Judiciário, além de ridicularizar a nobre função do juiz”, segundo o Jornal do Brasil do dia 15 daquele mês. O que constrangeu o advogado foi, sobretudo, a cena em que Lúcia Brandão e Renato Villar fazem sexo na casa de praia do empresário, refúgio do casal, “em deplorável intimidade”, dizia o advogado em sua petição.

Lúcia era uma juíza sussurrante que passou bons capítulos dividida entre o dever e o amor. Ela começa a novela como uma dura aplicadora da lei, com discursos sobre punição a corruptos. Marcílio Moraes conta que a personagem vinha de outro lugar, de uma série nunca produzida de Ferreira Gullar e Armando Costa, sobre “uma juíza duríssima”. “Era amor à manta, um Moro de saia”, diz ele, ecoando comparações feitas agora nas redes sociais.

A personagem de Lúcia, e a novela, sofrem uma baixa já próximo ao Natal de 1986. A atriz Lúcia Veríssimo, que vivia Laiz, a irmã da juíza, é demitida após faltas sucessivas. Ela era um contraponto à firmeza de Lúcia, um tanto tresloucada e arrivista.

Em conversa por vídeo, Lombardi diz que gostava de sua juíza, porque era uma mulher forte e com poder, o que não era comum nas protagonistas. “A Lúcia trazia, aliada ao amor, uma mulher incorruptível, que acreditava em valores.” Lombardi construiu uma juíza firme, mas que fala sempre com uma voz baixa e doce. “Eu sabia que ela teria um ‘turning point’, que se apaixonaria pelo cara que tinha de julgar e que seria um dilema. Criei então um ponto de fraqueza”, diz a atriz. Como o leitor já deve estar imaginando, Lúcia escolhe o amor de Renato ao dever.

O tema que embala o casal, “Transas”, de versos grudentos e ritmo langoroso na voz de Ritchie, foi a música mais tocada na FM de São Paulo. Mas a canção que pode ser considerada a assinatura de “Roda de Fogo”, segundo Frederico Pellachin, autor do blog Na Trilha das Novelas, é “Pra Começar”, de Marina Lima, que acompanha a abertura, feita por Hans Donner, com animais de pedra ganhando vida ao cruzar aros, enquanto o homem vira pedra. A versão de estúdio da canção existe só na abertura e, no disco da trilha nacional da novela, o que há é uma versão ao vivo.

“Além de a letra ser amarrada com a trama, também ficou marcada por um arranjo original que combinou um beat de bateria, próximo a um pulsar de coração, com um riff de guitarra agressivo e um uivo desconcertante da Marina”, diz o radialista e pesquisador de teledramaturgia.

A trilha incidental, de nomes como Waltel Branco, Geraldo Vespar e Dori Caymmi, se destaca pelo tom eletrônico e exagerado. Muitas vezes, é ela que impõe o tempo da cena e puxa o zoom dramático, como nas dores de cabeça de Renato.

A trajetória de crápula a herói de Renato levou ao impasse de sua morte no fim da novela. Na véspera do último capítulo, a capa da Ilustrada trazia “público quer Renato Villar vivo”. Uma pesquisa Datafolha feita com moradores de São Paulo apontava que 65% dos que seguiam a novela queriam um final feliz —Renato vivo e com Lúcia. Enquanto 32% preferiam que o salafrário morresse.

“O herói não era um príncipe encantado, mesmo depois que fica bonzinho, não dá colher de chá para ninguém”, diz Moraes. “Mas o público sabia que, no fundo, ele tinha uma boa intenção, e não o renega.” “Não podíamos começar uma novela prometendo que o camarada vai morrer e ele não morrer”, diz Daniel Filho. “Batalhei violentamente para ter essa morte.” Ele lembra que também houve discussões em 1975, pelo final de “Pecado Capital”, sob sua direção. “Quando morreu o Carlão [vivido por Francisco Cuoco], também foi uma queda de braço com a Janete [Clair, autora da novela]. Não podíamos deixar o camarada ganhando aquela grana impunemente.”

“Ia ficar muito feio se Renato não morresse”, diz Moraes. Sim, leitores, ele morre, e não existe spoiler com 35 anos de atraso. Sentados em areias paradisíacas, Renato e Lúcia se abraçam, e ele desfalece, derramando uma taça de vinho tinto. “Ficou uma coisa metafórica, o espectador não o viu morto”, diz Moraes.

Em 1988, a “TV Pirata” se inspirou em “Roda de Fogo” para criar um de seus quadros mais famosos, “Fogo no Rabo”, uma sátira de novelas que teve 33 capítulos e consagrou Barbosa, o personagem bicudo de Ney Latorraca. O humorístico oferecia risadas aos que queriam se descolar dos que seguiam dando importância e audiência à teledramaturgia.

Hoje, as novelas perderam a relevância, já não pautam conversas e furores “tele-ideológicos”, que preferem reality shows. Elas andam infestadas de fáceis maniqueísmos moralizantes, mocinhas sem graça e vilões pastelões. Os diálogos saborosos e cenas de arrepiar de “Roda de Fogo” são o atestado de que para entreter não é preciso aparvalhar.

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