Teledramaturgia – entrevista com Marcilio Moraes

Organizando arquivos, encontrei a entrevista abaixo, sobre teledramaturgia,  que dei para uma jornalista que ia fazer um livro. Como o livro não saiu, e a entrevista resultou interessante, resolvi divulgá-la, apesar de alguns anos terem se passado e alguma coisa ter mudado no panorama. Não boto o nome da jornalista porque não sei se ela gostaria. Mas se não tiver restrição, é só me avisar que a identifico.

 

Vidasopostas

1. O senhor trabalhou durante 20 anos na TV Globo, durante muito tempo hegemônica em teledramaturgia no país. Apesar dos seus trabalhos como roteirista e autor de novelas, você já declarou algumas vezes que a experiência não tem tanto glamour, como as pessoas imaginam. Por quê?

R. Durante os últimos 30 e poucos anos no Brasil, a aspiração profissional máxima para os autores roteiristas foi trabalhar na Globo. Porque é a produtora-exibidora que tem mais recursos, maior visibilidade e a que paga melhores salários. Até aí, a resposta é óbvia. Acontece que a posição hegemônica mantida durante tanto tempo, criou na Globo um regime interno parecido com funcionalismo público. Estabilidade e poucos desafios. O peso da grandiosidade empresarial criou medo de apostar em idéias novas. Logo, o trabalho artístico perde muito do glamour. Foi isso que eu quis acentuar.

  2. Como surgiu o convite de ir para a Record, fazer Essas Mulheres? O que mais o atraiu nessa oportunidade? Como é estar do outro lado, competindo com a emissora em que você trabalhou durante tanto tempo?

R. Eu tinha saído da Globo, acabava de lançar um romance, e fui chamado pelo Herval Rossano para assumir a adaptação de três obras de José de Alencar para novela.

A proposta me atraiu de imediato, não só porque sou admirador de José de Alencar, como também pela oportunidade de contribuir para a abertura do mercado na televisão brasileira, uma das plataformas  políticas principais da Associação dos Roteiristas, que eu já presidia, naquela época.

Um fato curioso sobre “trabalhar do outro lado”, foi que, quando saí da Globo, declarei à Folha de São Paulo que tinha experiência em escrever telenovelas de sucesso e se algum concorrente me desse condições, eu sabia como bater a Globo. Ou seja, eu me sentia atraído pelo desafio de concorrer com a líder. Em Essas Mulheres, não deu para bater, porque a audiência não foi muito alta. embora a novela tivesse adquirido um excepcional prestígio. Mas em Vidas Opostas, consegui não apenas prestígio mas audiência espetacular. Foi a primeira novela da Record que efetivamente bateu a Globo.

3. Quais as principais vantagens e desvantagens entre trabalhar em cada uma dessas emissoras?

R. Na Globo, você tem mais condições, mais infra-estrutura, mais repercussão e às vezes maior remuneração.

Na Record, tem o desafio e, até certo ponto, maior liberdade de experimentar.

4. Como começa o processo de criação de uma novela, desde a idéia, até a aceitação do projeto pela emissora, passando pela conquista de anunciantes, para a exibição se tornar viável?

R. A criação de uma novela começa na cabeça do autor. Uma primeira idéia, que começa a se desenvolver, até se transformar numa pré-sinopse. Eu pelo menos costumo trabalhar assim. Apresento esta pré-sinopse. Se for bem aceita pela direção da emissora, faço uma sinopse mais detalhada. Neste processo inicial, as possibilidades, ou possíveis dificuldades, comerciais já são discutidas entre o autor e a emissora.

 

5. Quais as principais diferenças no processo de criação de “Essas Mulheres”, novela que era uma (livre) adaptação dos romances “Senhora”, “Diva” e “Lucíola”, de José de Alencar, e de “Vidas Opostas”, que partiu de uma idéia original sua?

R. A idéia de juntar os três romances, três histórias femininas, de José de Alencar numa novela era do Herval. Ele havia constituído uma equipe para desenvolver o trabalho, mas por alguma razão não ficou satisfeito com o resultado. Então me chamou para assumir a tarefa. Já havia uma primeira sinopse escrita pela equipe. Refiz esta sinopse, com a preocupação central de criar uma telenovela, em detrimento da fidelidade aos originais de Alencar. Foi um trabalho muito gratificante, porque gosto da época, o século XIX, gosto da literatura daquele tempo e gosto especialmente dos romances sobre os quais trabalhei. Embora tenha assumido inteira liberdade artística, trabalhar com os personagens de Alencar me proporcionou extraordinária gratificação.

Já Vidas Opostas oferecia o desafio do desconhecido. Embora eu tenha me calçado em tramas tradicionais em telenovelas, como a disputa pelo poder numa grande empresa, o glamour do mundo da moda, etc, a parte da favela, do tráfico, da corrupção policial era praticamente inédita em telenovelas. Foi um risco enorme abordar este universo. Felizmente deu certo. Foi uma novela extremamente trabalhosa e cansativa, mas muito gratificante.

6. Você costuma usar referências cinematográficas, dramatúrgicas ou literárias em seus textos? Se sim, pode citar um exemplo?

R. Gosto de usar não apenas referências mas busco mesmo inspiração principalmente em obras literárias clássicas.

Em Vidas Opostas me inspirei num texto do século XVI, de Lope de Veja, um dos maiores dramaturgos espanhóis, chamado Fuenteovejuna, que conta a história de um povoado que se rebela contra o poder discricionário de um senhor da guerra que os governava.

 7. Quando escreve uma novela, você se guia pelos números do Ibope? Já precisou fazer alguma coisa diferente do que tinha planejado, por causa da audiência? (Se sim, você pode exemplificar essas alterações?)

R. Quem escreve para televisão não pode deixar de ter o Ibope como referência, especialmente na telenovela, que é uma obra elaborada ao mesmo tempo que vai ao ar. Pode-se dizer que é escrita ao vivo. Nesse tipo de trabalho,  interação com o público é vital.

Mas o autor não pode se submeter à volubilidade dos números. Tem que ter seu cálculo, saber o que está fazendo, conhecer as técnicas de segurar o público.

Quem costuma ficar nervoso com os números do Ibope são os diretores das emissoras, porque eles não sabem o que está na cabeça do autor, não sabem com a história vai se desdobrar. O autor tem que saber aferir as reações do público e trabalhar com elas. É uma interação.

Quando o autor tem que modificar o planejado é porque errou nos seus cálculos, ou não pôde resistir à pressão de quem tem o poder na emissora.

Na novela Mandala, tive que mudar toda a história, porque o previsto, o incesto, foi proibido pela censura e também rejeitado pelo público, o que se manifestava na baixa audiência.

  8. “Vidas Opostas” foi um mega sucesso da Record nessa nova fase de investimento em teledramaturgia. Como foi estar à frente desse projeto? Como surgiu a idéia? Já esperava que fosse sucesso? A que fatores o senhor atribui estes resultados?

R. De fato, Vidas Opostas fez um extraordinário sucesso, não apenas de audiência mas também de crítica. O prestígio que a novela adquiriu só teve paralelo em Pantanal. Estar à frente deste projeto me proporcionou um dos momentos mais felizes da carreira.

A idéia surgiu de outros trabalhos que eu vinha desenvolvendo fora da televisão. Escrevi duas peças sobre o mundo das drogas e do tráfico. Também no meu romance, O Crime da Gávea, abordo este assunto. Por ironia, nunca consegui patrocínio para as peças, por causa da temática pesada. Felizmente, a direção da Record teve a ousadia de bancar o projeto. E deu tudo certo, provando que o público não rejeita as histórias questionadoras, instigantes, ainda que violentas.

O projeto era arriscado. Ninguém até então tinha escrito uma novela em que metade dos personagens eram favelados. Havia muito medo de rejeição.

A principal razão do sucesso, modéstia à parte,  foi a dramaturgia. Fugi dos estereótipos que dominam as novelas hoje em dia. Em Vidas Opostas não houve teste de dna, gente ouvindo atrás de portas, casamentos de último capítulo, nascimento de bebês, quem matou?, etc.

Apesar da temática popular, a dramaturgia foi sofisticada, sem apelações, apostando na inteligência e na sensibilidade artística do espectador. 

 9. Foi por conta de uma classificação do Ministério que a novela teve que ser exibida às 22h. Existiu algum tipo de cena que a emissora pediu que fosse evitada?

R. A direção da Record havia me encomendado uma novela paras as 21 hs. Depois, achou mais conveniente exibir ás 22 hs. De início, não concordei, mas eu estava errado. Foi um acerto o horário das 22 hs. Tanto que Vidas Opostas consolidou esta faixa, deixando para a seguinte um caminho aberto de sucesso.

 10. Alguns personagens de Vidas Opostas, principalmente os vilões Jacson da Silva (Heitor Martinez) e o delegado Dênis Nogueira (Marcelo Serrado) fizeram muito sucesso de público e de crítica. Você participou da escolha do elenco? Criou os personagens já pensando nos atores que poderiam interpretá-los?

R. Meus personagens são inteiramente imaginários de início. Nunca penso em atores quando concebo a história. É mais rico assim, tanto para o autor como para o ator. Se você já pensa no ator, me parece que a tendência é criar um personagem semelhante a outros que ele já fez. Se o personagem é inteiramente imaginário, será um desafio para o ator.

Minha participação na escolha do elenco é mais por meio de vetos que indicações. Acredito na competência do diretor da novela e do diretor de elenco. Mas às vezes veto alguém, por me parecer que nada tem a ver com o/a  personagem que criei.

11. Jacson ganhou a torcida do público e muita gente queria que ele terminasse a novela com a Joana (Maytê Piragibe). Essa reação era esperada?

R. Quando juntei o Jacson com a Joana, sabia que o público se dividiria. Era isso mesmo que eu queria. É ótimo quando se criam divergências numa novela, dá vitalidade à trama e torna o final imprevisível.

12. Logo após o término de sua novela, a TV Globo começou a exibir “Duas Caras”, de Aguinaldo Silva, que também se passa em uma favela carioca. Acha que foi proposital? É possível fazer uma comparação entre as duas obras?

R. Não sei se foi proposital, só o Aguinaldo Silva pode dizer isso. De qualquer forma, Duas Caras velejou nos ventos que a passagem rumorosa de Vidas Opostas deixou.

Não sei se é possível comparar as duas obras. Enquanto eu focalizei a violência urbana através de uma comunidade favelada, traficantes e policiais corruptos, o Aguinaldo trabalhou com a chamada milícia. Infelizmente, deu aos personagens milicianos características de heróis, o que é perigoso, porque, a meu ver, na realidade são tão ou mais bandidos que os traficantes

13. Atualmente, está trabalhando em algum texto novo para a TV Record?

R. Tenho o projeto de transformar Vidas Opostas em seriado. Está em análise na emissora.  E preparo uma novela para 2009.
14. Até quando dura seu contrato com a emissora? O salário lá é mais alto do que na TV Globo, que tenta segurar seus autores contratando a “peso de ouro”?

R. Meu contrato vai até 2010, se não me engano. Sobre salários, melhor não falar.

15. . O senhor também participou de uma das fases da novela Metamorphoses, exibida pela Record. A novela gerou polêmica e teve certa rotatividade de autores. Como foi essa experiência?

R. A produtora, independente, me contatou para escrever uma novela em cima de algumas idéias que desenvolveram lá. Eu estava fora da Globo e tinha todo interesse em que a produção independente desse certo na TV. Assinei um contrato com eles com a condição de que não haveria intromissão. Trabalhei durante um mês numa sinopse e quando apresentei  eles reclamaram que faltavam algumas das idéias que tinham proposto e outros senões. Eu reiterei que não aceitava interferências. Percebi que não teria condições mínimas e que a novela seria um inevitável desastre e que eu pagaria um preço profissional altíssimo se tivesse meu nome envolvido naquilo. Propus o rompimento do contrato. Eles concordaram e assinamos o chamado “termo de resilição”, que é a suspensão amigável de um contrato. Infelizmente, minha percepção se mostrou correta. A novela foi uma catástrofe e desmoralizou a produção independente em tv por muito tempo.