MUMU
Jornal Última Hora – Rio de Janeiro, segunda-feira, 1º de dezembro de 1975.
Mumu / a estréia de hoje
Um acontecimento cultural importante está marcado para hoje à noite no Teatro Nacional de Comédia: a estréia de um texto de um jovem autor brasileiro, Marcílio Moraes, intitulado “Mumu” (ou “A Vaca Metafísica”). A peça foi uma das cinco primeiras classificadas no último Concurso de Dramaturgia do SNT e, através de uma linguagem metafórica, que frequentemente a identifica com o teatro do absurdo, aborda dramaticamente o imobilismo da classe média. O produtor Rodrigo Faria Lima inicia auspiciosamente, com esta peça, as suas atividades no Rio, depois de ter apresentado em São Paulo uma versão retocada e (quase) luxuosa, se a expressão cabe, de “Viva o Cordão Encarnado”, sob a direção de Luis Mendonça. De fato, a escolha dos elementos que compõem a ficha técnica e artística de “Mumu” revela os cuidados de apresentar um produto bem acabado, à altura do significado do texto. O diretor é Flávio Rangel, que há muito nos deve um trabalho menos dependente dos sucessos da Broadway. Os cenários são da autoria de Gianni Rato e os figurinos de Kalma Murtinho. E no elenco, quatro atores de primeira ordem: Ida Gomes, Osvaldo Lousada, André Valli e Júlia Miranda. Cedo meu espaço habitual das segundas-feiras a Flávio Rangel para que ele nos explique aqui a sua visão da peça e os critérios que norteiam o seu trabalho de diretor.
Armindo Blanco
COMO NÃO ENCONTRAR A FELICIDADE
Mumu é uma peça premiada. Que ela tenha conseguido o terceiro lugar num concurso de dramaturgia que analisou mais de trezentos textos, é particularmente significativo neste momento de nosso país. É quase como se os membros do júri estabelecessem que a metáfora passa a ter condição artística em si mesma.
Li as peças que conseguiram os primeiros e segundo lugares. Rasga Coração, de Oduvaldo Viana Filho, é um momento alto na dramaturgia de qualquer país, um instante decisivo no drama brasileiro: um autor maduro, em plena posse de seus meios de expressão, entregando-se inteiro à sua arte e retirando dela uma análise pungente e lúcida de alguns anos da evolução política de nosso país. E Invasão de Bárbaros, de Consuelo de Castro, é um texto selvagem e belo, de invulgar força dramática, situando-se num ponto particular dessa evolução – os movimentos estudantis de 1968. Embora justissimamente premiadas, é pouco provável que qualquer uma delas venha a ser encenada, pelo menos por enquanto. Até agora não foram liberadas pela censura. Ambas as peças têm todas as qualidades que são a delícia de qualquer profissional do palco: riqueza de diálogo, pesquisa de um estilo nacional, temática autêntica e uma tão completa sinceridade que são, em si mesmas, uma opulenta e permanente veia de inspiração a quem quer que possa, um dia, encená-las.
De que trata Mumu?
O autor a define com uma tragimédia. Isso não diz tudo, porém. Pode-se classificá-la dentro de um gênero, se bem que do ponto de vista artístico, o que mais me tenha prendido à peça seja o perfeito equilíbrio entre teatro realista e teatro de absurdo. Mas Mumu é uma peça sobre a aceitação. A aceitação do conservadorismo, a aceitação da frase feita e do lugar comum da idéia velha opondo-se à idéia nova. A aceitação de se levar uma vida próxima à do quieto desespero, e a impotência de modificá-la, modificando assim o status quo. Os personagens de Mumu são a argila da qual se extrai o edifício das sociedades estáticas. São usados e manipulados, e são imediatamente reprimidos, se ousam levantar a cabeça para contemplar o céu de amanhã, e fecham a janela para impedir o sol de entrar.
Existem apenas dois países no mundo cujas constituições inscreveu entre os direitos de seus cidadãos “a busca da felicidade”. São as dos Estados Unidos e do Vietnam (Ho-Chi-Mim era um grande admirador de Jefferson). Como se vê o problema reside na maneira pela qual a felicidade deve ser conquistada. Não sem razão um dos personagens de Mumu tem o nome de Jeremias: e através de suas freqüentes lamentações, que repete de forma obsessiva, fica também claro que o ideal de realização humana, nestas latitudes e nestas alturas, é ter o pão na mesa. Mas nem só de pão vive o homem.
É possível que as grandes sociedades, no afã de dar riqueza material aos homens, tenham investido o alvo de suas preocupações, dando maior ênfase à riqueza e diminuindo o homem. Construíram uma Mumu para lembrar sempre aos homens que não convém pensar, debater, discutir. E que, com seus mugidos, estabeleça um padrão a ser seguido. Pois se ninguém puder pensar, nem se expressar, nem discutir, nem debater, enfim, se ninguém puder participar da aventura humana que pertence a todos nós, viveremos num “oásis de tranqüilidade”. Faltam nove anos para 1984. Ou será que ele chegou? Será que quando Pedro se refere ao enterro do autor do teatro que assistiu, assistiu o sepultamento de toda uma dramaturgia amordaçada?
Ou não. Mumu pode ser como Godot: cada qual tem o seu. A diferença é que Godot não vem, e no final da peça de Marcílio, há uma percepção de verdadeira natureza de seu mito.
Para terminar estas considerações algo abstrato, vale notar que em momentos em que a palavra vale pouco, há quem pense que ela já não vale nada. Houve quem decretasse a morte da palavra, no teatro brasileiro. Decreto estético, do resto inútil, porque a palavra já estava reprimida por outros meios mais pragmáticos. Segundo os espetáculos que se filiaram a essa tese, Mumu seria apenas um pretexto, um ponto de partida, um roteiro para um show pirotécnico. Não é o que eu quis fazer. Quis apresentar ao público um autor estreante da forma que ele escreveu seu texto. A eventual experiência, minha e de meus colaboradores, serviu apenas para colocar-se a serviço do autor. Se eu tiver conseguido transmitir ao público o que a peça me transmitiu na leitura, terei apresentado um espetáculo que faça a platéia rir, comover-se e pensar. É a essência do teatro. Caso tal não aconteça, a culpa foi minha.
Flávio Rangel