Folha de S. Paulo – Terça-feira, 23 de março de 1976
Nosso crítico Jefferson Del Rios descobre uma boa peça de teatro em Santo André, encenada por um grupo local
É o mundo da maioria silenciosa
São poucos, ultimamente, os espetáculos fiéis ao destino histórico do teatro, que é o de refletir as contradições de seu tempo e lançar indagações ou propostas sobre a situação do ser humano, no âmbito individual e social. A constatação é necessária porque na atual temporada, em que a quantidade supera a qualidade, a exceção representada por “Mumu” (Teatro Municipal de Santo André) indica que em algum lugar o teatro não se traiu.
Em “Mumu”, Marcílio Moraes traça o doloroso perfil da classe média, demonstrando com extrema meticulosidade detalhes de seu comportamento. O ambiente fixado pelo dramaturgo é o território difuso da classe média-média e baixa, povoado de escrituários, operários especializados e funcionários públicos de grau inferior. O mundo da maioria silenciosa. A obra fotografa – e depois comenta indiretamente – o quotidiano desta gente, desnudando os preconceitos, os valores morais e sociais que regem seus atos condicionados pela obssessiva necessidade de segurança.
A peça se desenvolve em dois tempos. No primeiro está um casal de meia idade e sua filha. O pai é o assalariado apagado e insatisfeito que chega em casa, após o expediente, para contar à esposa os pequenos incidentes da repartição enquanto ela, por sua vez, relembra intrigas da vizinhança. Isso todos os dias, anos a fio. O homem ensaia desaforos que jamais dirá ao chefe e a mulher o acompanha no cerimonial da dignidade ressentida.
No segundo tempo, a filha tenta contestar o panorama doméstico incolor e melancólico. Casa-se e procura seu futuro. O enredo passa então a seguir esta trajetória e a desvendar o que está reservado aos filhos e continuadores desta mesma classe média.
O tratamento dado aos fatos lembra a observação de um personagem de Maximo Gorki, em “Pequenos Burgueses”: – “A vida nada tem de trágico, vai passando lenta, monótona, como um rio lamacento. E quando se vê este rio correr, os olhos vão se cansando, um tédio vai tomando conta de tudo, a cabeça vai ficando pesada e nem se tem mais vontade de saber por que é que ele corre”.
E uma existência bovina, morna e triste: para salientar o seu absurdo, Marcílio Moraes introduz na trama a presença abstrata mas inquietante de uma vaca que acompanha os personagens.
A linearidade dos incidentes e a sua constante repetição faz de “Mumu” um texto de difícil rendimento dramático. E neste ponto que interfere outro elemento do fenômeno teatral: o empenho dos responsáveis da transposição de uma obra escrita ao palco.
O espetáculo foi executado com paixão e é dela que nasce sua força. Sobre a linguagem do autor, o diretor Silnei Siqueira escreveu a sua, passional e sem disfarces. Arrancou do papel situações onde a emoção está fundamentalmente , à serviço da razão. Uma criação visceral na qual expõe o melhor de sua sensibilidade artística e social.
A entrega emotiva mas consciente ao desempenho é visível em todo o elenco. Antonio Petrim penetra no personagem e o assume inclusive nas reações físicas do homem alquebrado, defendendo-se de perigos invisíveis. Sonia Guedes, com seu poderoso temperamento dramático, impõe o clima de dor e desalento com apenas um olhar ou uma expressão facial. Desempenho pleno de brilho e intensidade.
Carlos Augusto Strazzer, um talento vigoroso, constrói perfeitamente um personagem em duas épocas, alternando o período de juventude audaciosa com o prematuro desânimo do homem que se entrega. Tania Alves, uma atriz naturalmente exuberante, encontrou o meio tom, a ambigüidade de um papel que exige contenção.
“Mumu” completa-se com o envolvimento sonoro: músicas adequadas para cada circunstância, a partir da abertura com “Abe Maria” de Gounod que expressa, de saída, todo um tipo de vida familiar. A cenografia de Marcos Weinstock exterioriza nas paredes ásperas e manchadas o que vai na alma dos moradores; encontrou, ainda, uma solução de fortíssimo impacto para a cena final.
É um espetáculo que põe em questão a maior parte do que está em cartaz em São Paulo. Por efeito de contraste deixa em relevo o comercialismo dos que procuram o caminho mais fácil. Ao invés de se entregar ao conformismo, “Mumu” devolve ao palco a sua dimensão de tribuna aberta aos problemas do homem.