Jornal do Brasil – 06-12-1977
O tempo passou na janela…
Como um dos membros do júri que deu a Mumu o terceiro lugar no concurso Prêmio SNT, eu estava ansioso de verificar o funcionamento do texto de Marcílio Moraes em cena. O resultado é tranqüilizador: ao premiar Mumu, o concurso revelou um jovem autor que tem algo a dizer e que tem o teatro no sangue. O lado amargo do acontecimento fica por conta da constatação do quanto estamos perdendo por não podermos ver encenadas as peças colocadas nos dois primeiros lugares do mesmo concurso.
Apesar do seu inquietante subtítulo A Vaca Metafísica, Mumu é uma peça intensamente engraçada: seu diálogo chega a ser brilhante, suas situações ao mesmo tempo rotineiras e insólitas têm um permanente poder exclusivo de humor, seus personagens são todos pateticamente ridículos. Mas como é doloroso o riso a que Marcílio nos obriga, ao jogar-nos na cara a sua impiedosa análise de uma família pequeno-burguesa que é, que o reconheçamos ou não, um pouco a nossa. Inclusive a sua, leitor.
Em certos sentidos, a suburbana ou provinciana família de Mumu é um pouco como a família Besemenov de Os Pequenos Burgueses, que também se agarrava cegamente a valores irremediavelmente ultrapassados, sem perceber um mundo completamente diferente que surgia a sua volta.Mas em Pequenos Burgueses havia duas pessoas que conseguiam furar o bloqueio e jogar uma espécie de ponte entre o passado e o futuro, enquanto em Mumu todas as tentativas no sentido de olhar para a frente se revelam utópicas e condenadas ao fracasso. Em outros sentidos, a família de Mumu parece-se com os dois vagabundos de Esperando Godot, esmagados, como ela, pela arrasadora passagem de um tempo vazio que não traz mudança alguma. Mas a espera de Godot desenrola-se num abstrato espaço metafísico, enquanto a família de Mumu é inconfundivelmente Brasil 75, e portanto machuca mais a gente, pela proximidade da paisagem humana retratada.
É claro que com este paralelo não quero estabelecer nenhuma comparação qualitativa: Marcílio Moraes está longe de ser Gorki ou um Beckett, e a maior diferença talvez resida no fato de que, enquanto esses dois autores criaram formas de expressão intensamente pessoais, Marcílio ainda está visivelmente na fase de assimilação – embora já bem sedimentada de múltiplas influências recebidas. Mas se a sua hábil Mistura entre empostação realista e imagens características do teatro do absurdo revela, no aspecto formal, por enquanto um respeitável volume de leituras bem absorvidas, mais do que a cristalização de um estilo pessoal, o conteúdo da sua anedota cênica nos mostra um atento e agudo observador da realidade nacional. E o aspecto a meu ver mais impressionante e digno de reflexão na mensagem que ele propõe é o caráter cíclico que atribui a acomodação e ao conservadorismo da classe média: a geração jovem da família, que pretendia rebelar-se contra a mediocridade da vida dos pais, logo adota uma visão tão bitolada quanto aquela contra a qual queria reagir. É curioso, aliás, constatar de passagem a semelhança que existe a este respeito entre a ação dramática de Mumu e a da peça vencedora do concurso, o belíssimo Rasga Coração, de Oduvaldo Viana Filho. Só acho uma pena Marcílio ter atribuído à jovem filha, no final de Mumu, uma repentina e dolorosa explosão de tomada de consciência a meu ver pouco coerente com o resto da sua trajetória.
A peça foi tratada com visível carinho na encenação em cartaz no TNC, a começar pelo muito expressivo cenário de Gianni Ratto e pelos corretos figurinos de Kalma Murtinho, e terminando no aspecto visual de direção de Flávio Rangel, que elaborou uma marcação sobriamente equilibrada e iluminou o espetáculo de modo bastante inspirado. Mas na empostação geral do tom da encenação alguns equívocos me parecem ter sido cometidos: eles não impedem os valores essenciais do texto de chegarem ao espectador, mas enfraquecem sensivelmente o seu impacto. Em primeiro lugar, a Ênfase quase caricata das composições resultou claramente contraproducente: o que é fundamentalmente grotesco em Mumu não são os personagens isoladamente, como acontece no espetáculo, e sim a incolor rotina do cotidiano e a inexorável passagem do tempo dentro dessa rotina; e esse grotesco teria sido conseguido mais convincentemente através de uma representação menos pontuada de exótico, pintada com pinceladas menos fortes do que as que foram adotadas. Outro elemento contraproducente são os em si lindos slides de Claus Meyer, que projetam a realidade da família-exemplo para o cotidiano do povo nas ruas. Ora, a peça me parece justamente incisiva (e, inclusive, política) na medida em que se passa num espaço trancado, hermeticamente isolado do que acontece lá fora; e o texto em si é suficientemente claro para que o espectador deduza sem a óbvia ajuda dos slides, que cortam a fluidez da ação, que a família que vemos não é um exemplo isolado, mas sintoma de uma estrutura mais ampla.
Num trabalho admirável, Osvaldo Lousada domina de ponta a ponta a distribuição, dando uma verdadeira aula de interpretação ao mesmo tempo inteligentemente crítica mas também cercada de uma profunda simpatia humana. O resto do elenco, embora sem comprometer, fica num nível bastante inferior: André Valil custa a definir a linha exata do seu personagem, e só a encontra na fase final, através de recursos de composição; Ida Gomes, embora correta no seu desempenho, tem um tipo físico que destoa da suave fragilidade da personagem; e Julia Miranda, bastante falsa no primeiro ato (prejudicando-se, inclusive, por não saber controlar as mãos, o que poderia aprender simplesmente observando o trabalho de Lousada, um mestre neste aspecto), só começa a ganhar alguma autenticidade depois do intervalo. Entretanto, todos os quatro sabem o que estão fazendo; e justamente por ser uma realização consciente, da primeira linha do texto ao último prego do cenário, é que Mumu deve ser reconhecido como uma presença positiva no panorama atual.