O Crime da Gávea, um filme de autor-roteirista
Entrevista com Marcílio Moraes, autor da trama de suspense psicológico que estreia nos cinemas em 9 de março.
Aproveitando o momento de lançamento e divulgação do filme para aprender com o mestre Marcílio, resolvemos abrir o debate interno para discutir questões como sobre processo criativo e de produção e legislação autoral. E, sobretudo, tentar responder à polêmica questão:
“de quem é o filme?”
Com a palavra, nós mesmos:
Marcus Veras, sobre a gênese do projeto: se não me engano, O Crime da Gávea nasceu como romance e depois virou roteiro para filme. Conte um pouco como foi essa passagem do papel para as telas.
MM: Veras, fiz uma primeira versão do roteiro um ou dois anos depois de ter escrito o romance. Lembro que senti algum desconforto, porque me via muito preso, muito compromissado com o texto literário. Mas como havia um certo consenso entre os que escreveram sobre o livro de que era muito visual, fui em frente. Quando resolvi fazer o filme, retrabalhei o roteiro no sentido de uma subjetivação, ou seja, assumi plenamente a narrativa em primeira pessoa, tendo o protagonista como narrador, como é no livro, de forma a criar a possibilidade da linguagem cinematográfica correr como “fluxo de consciência”, tal como conceituado na tradição literária.
Mauro Alvim, sobre trajetória: Marcílio, de dramaturgo você passou a roteirista de TV, encontrou alguma dificuldade nesta mudança de estilo? Aliás, o que lhe é mais prazeroso, escrever para o teatro ou para a TV?
MM: Mauro, quando iniciei minha carreira, no teatro, na década de setenta, nem me passava pela cabeça ir para a televisão. Devo confessar que o que me moveu em direção à telinha, já na década de oitenta, foi a possibilidade de ganhar dinheiro. Quem faz teatro sabe o quanto é dura a parada. Não encontrei nenhuma dificuldade em me adaptar à escrita de televisão. Se você tem experiência como dramaturgo, se sabe como escrever uma cena; como construir um personagem; como desenvolver um personagem criado por outro, sem perdê-lo; como infundir ação num diálogo, etc, certamente vai dar conta do recado. Escrever para teatro é muito bom, pelo menos quando você acerta. Tenho uma peça, “A Vaca Metafísica”, que já deve ter tido umas 100 montagens, por baixo, da década de 70 para cá, profissionais, semiprofissionais e amadoras, nas capitais, no interior e nas periferias. O que mais me impressiona são as diferenças. Eventualmente, assisto uma dessas encenações e fico pasmo. As leituras que os grupos fazem da peça são às vezes tão inesperadas para mim que fica claro um certo clichê, de que depois que você escreve, o texto não mais te pertence. E não pertence mesmo (só os direitos autorais, claro). Apesar disso, é gratificante. A grande vantagem da televisão, fora o alcance (e a grana), é a rapidez. Você escreve hoje e dali alguns meses está no ar. Se é novela, dali a 20 dias está pintando na telinha. Já no cinema, você tem que rezar para ainda estar vivo quando o filme for exibido.
Matheus Colen, sobre o processo criativo: como as suas histórias nascem? Onde estão as suas fontes de inspiração e referências que te motivam a escrever e contar histórias?
MM: Difícil explicar, porque responder que as histórias nascem da minha imaginação vai parecer uma tautologia, mas o que eu quero dizer é que, desde pequeno, sempre vivi tão dentro da minha cabeça que é de lá que tudo vem. No meu caso, não posso dizer que tinha alguém que contava histórias que me fascinavam ou que havia uma realidade interessante em volta de mim que eu quisesse retratar. Nada disso. O que eu queria era criar um mundo que me servisse, um mundo para me refugiar. Mais tarde descobri que tinha gente que fazia disso uma profissão e resolvi que meu sonho era me tornar escritor.
Como você organiza o seu trabalho de escrita? Usa alguma técnica em específico, como cartões, lousas, post its, etc?
MM: Eu não diria que tenho uma técnica específica. Geralmente, começo por anotar num caderno, ou já no computador, as primeiras ideias, tento definir teoricamente os conflitos principais, etc. Se é uma novela, na sinopse, pego uma cartolina (será que as pessoas ainda sabem o que é isso?) e faço um esquema dos personagens. O principal, ou os dois principais, se é uma história de amor, no centro, e ao redor deles vou colocando os demais, uns mais próximos, outros mais afastados, de forma a que os diversos núcleos apareçam mostrando suas relações com os protagonistas. Aí fico olhando para aquele enorme papel branco, cheio de nomes rabiscados com uma caligrafia para lá de nojenta, e vou bolando o que acontece com aquela gente. Em algum momento, consigo ter um vislumbre da história como um todo, ou melhor, do fio da história. Aí vou para o computador – antes era a máquina – e começo a escrever a sinopse.
Alguns autores de literatura possuem ‘leitores de confiança’. Pessoas comuns que leem a história e dão suas impressões antes dela receber os tratamentos finais. Você submete seus textos literários a esse tipo de leitura? O que pensa sobre essa estratégia de escrita?
MM: Geralmente, mostro os textos para minha mulher, que nem sempre está com boa disposição para lê-los. Apesar disto, aprendi que, se ela torcer o nariz, o mais prudente é repensar a história. Às vezes, também mostro para algum amigo ou amiga, ou para um dos meus filhos. A estratégia de ouvir opiniões pode ser boa, mas também é perigosa. O mais seguro é se esforçar para desenvolver uma rígida capacidade de autoavaliação. E depois que tiver uma opinião sua bem consistente, só então procurar alguém para palpitar.
Algum personagem já te surpreendeu ao longo da escrita de um roteiro ou livro? Por exemplo, um personagem menor que inicialmente existia na trama para dar suporte aos conflitos de outros personagens, mas que no desenvolvimento do roteiro se torna uma figura mais importante.
MM: Ao longo de uma novela, quando você escreve tendo o retorno do público, sim. Muitas vezes, o carisma do ator ou mesmo a força inesperada do personagem superam a estrita função dramática que estava reservada para ele e você tem que mudar os planos. Apenas na escrita, quando a coisa está só na minha cabeça, numa série ou numa peça, acho que não. Como não trabalho com um planejamento rígido, gosto de deixar a história ir se desenvolvendo na sua própria lógica e aí, de certa forma, tudo é uma surpresa.
Quanto de reescrita existe na sua escrita?
MM: Na época da máquina, não havia quase nada, porque reescrever era um perrengue miserável. Numa novela, por exemplo, era inviável, porque se você quisesse trocar um parágrafo tinha que reescrever a página inteira. Costumo dizer que a grande vantagem do computador é a correção, a reescritura. Não sei é se os textos, em geral, melhoraram significativamente. Alguém precisar fazer esse estudo. Pegar os textos das novelas escritas a máquina e comparar com os textos feitos no computador. Mesmo em gêneros de dramaturgia menos exigentes, em termos de presteza, que a novela, não sou muito de reescrever. Aquele chavão do escritor amassando a página e jogando no lixo não é bem o meu estilo. Mas na literatura sou mais perfeccionista.
Qual é tua cena preferida do filme?
MM: O encontro no alto da Pedra da Gávea.
Ligia Lemos, sobre a colaboração: Entendo que somos todos autores-roteiristas: os titulares e os colaboradores. Autores de grandes e pequenas ideias, principais e assistentes. O crédito que diz apenas “colaboradores” pode se referir até à padaria que ofereceu um café para a equipe. Como você acha que deve ser o crédito dos autores-roteiristas colaboradores?
MM: Vamos primeiro pensar nas funções, para depois designá-las. Entendo que na escritura de uma novela ou série podem existir três funções. O autor, que é quem inventa a história e os personagens e escaleta os capítulos; um coautor, quando existe, que é alguém que contribui significativamente com ideias, sugestões e críticas, e que eventualmente também pode escaletar; e o colaborador, que é basicamente um dialoguista, ou seja, põe os diálogos na escaleta que recebe. Você tem razão, o termo “colaborador” não é lá muito charmoso, embora tradicional. Mas o de “roteirista” também não é. Roteirista pode ser o cara que faz os roteiros dos caminhões de entrega. Daí que a gente insiste que se use “autor-roteirista”. Alguns autores usam o crédito: “escrita com”. Novela ou série de fulano, escrita com beltrano e sicrano, evitando a palavra “colaborador”. Mas também pode se entender que “escrita com” designe uma participação mais importante que a do colaborador, alguma coisa entre este e o coautor. Não sei, Lígia, qual seria a palavra ideal para designar a função preservando a conotação de que se trata de um/a “autor/a-roteirista”. Acho que nos EEUU eles usam “dialoguista”. Não sei se é melhor ou pior. Talvez o mais adequado e o mais justo seja mesmo o “escrita com”, porque fica claro que se trata de um/a profissional da escrita.
Sylvia Palma, sobre vida associativa: Você foi um dos fundadores da AR, Associação dos Roteiristas, há 15 anos, hoje está no Conselho da ABRA, que uniu a AC com a AR. E, recentemente, fundou a GEDAR. Fale um pouco sobre essa sua dedicação ao fortalecimento da profissão do autor roteirista no Brasil, como era há 15 anos, o que avançou e o que precisa ainda avançar. E também sobre o que é a GEDAR e o que traz de novo para os autores.
MM: Meu projeto de vida original era ser escritor e me considero fundamente um escritor, mesmo fazendo roteiros, porque o autor-roteirista é, antes de tudo, um escritor. Às vezes me parece que alguns roteiristas não se consideram escritores, mas são. E a escrita é o fundamento de tudo, como a gente sabe, ainda que muitas vezes tentem escamotear este fato primordial, o que não é muito difícil, porque o escritor em geral é meio reservado, tímido, trabalha isolado. O incômodo que isso me causa, aliado ao meu gosto por política e a minha experiência no movimento estudantil, durante a ditadura, têm me dado o ânimo necessário para o trabalho de organização da categoria. De 2000 para cá, avançamos muito, especialmente nos últimos anos, com as mudanças ocorridas no mercado. Naquela época, o autor-roteirista só tinha dois lugares para ficar: no céu, ou seja, na Globo; ou no inferno, fora da Globo. Hoje existem alternativas profissionais e as antigas AR e AC, que perseguiam objetivos que pareciam utópicos, hoje formam uma poderosa entidade de representação de uma categoria que cresce a olhos vistos. A GEDAR, Gestão de Direitos Autorais, também persegue objetivos que, alguns anos atrás, pareciam utópicos – o recebimento, pelos autores-roteiristas, de direitos pela exibição pública de suas obras – e que hoje começam a se tornar plenamente alcançáveis, não só pela maior consciência dos profissionais como pelo enorme apoio internacional que estamos recebendo.
Jose Araripe, sobre legislação autoral: A lei diz que autores, são diretor e roteirista? Essa lei precisa ser revista?
MM: A Lei 9610, que trata dos direitos autorais, diz que “são co-autores da obra audiovisual o autor do assunto ou argumento literário, musical ou lítero-musical e o diretor”. A revisão tem que começar por essa definição, deixando claro que se trata do autor-roteirista e do autor do argumento, se forem pessoas diferentes. Além disso, a lei tem que deixar claro que a obra audiovisual é uma obra em co-autoria e não uma “obra coletiva” como as empresas tentam impingir, porque a obra coletiva é aquela em que não se conseguem distinguir as diversas participações individuais, como um dicionário, por exemplo, e assim a autoria da obra vai para organizador ou produtor. Por último, a lei tem que atribuir, com toda a clareza, o direito de remuneração pela exibição da obra para o autor-roteirista e para o diretor. Atualmente a lei só beneficia o músico com esse direito, tanto que ele é o único que recebe pela exibição pública, através do ECAD.
Nas premiações “O melhor filme” vai para o Produtor – isso não indica que o mercado trata o filme como do produtor? O ideal não seria (preservando-se todos os direitos autorais e patrimoniais): autoria de roteirista, direção de diretor e produção de produtor?
MM: Essa é uma discussão complexa. A meu ver, pelo menos teoricamente, o prêmio de melhor filme é para todo mundo que participou da produção. Aí o produtor diz que quem juntou toda essa gente foi ele, logo é ele que deve receber em nome de todos. Será que o mercado, em função disso, considera o filme como sendo dele, do produtor, no aspecto artístico? Acho que não. Considera que é dele no sentido empresarial, de que ele é o dono daquela mercadoria, o filme tal. Agora, por estranho que pareça, há um movimento dos produtores, reunidos em torno de uma entidade internacional chamada EGEDA, que reivindica o direito autoral também para o produtor. Acho que esse “de”, que indica posse, genitivo de posse, “filme de fulano”, no sentido artístico, que costumeiramente vai para o diretor, deve ser atribuído a quem criou o universo ficcional que o filme apresenta, como muito bem disse nosso colega mexicano, Arriaga.
No caso do argumento ser de um autor e o roteiro de outro como creditar o filme “de:”? E ainda somando a pergunta acima, se houver um livro adaptado, ou remake?
MM: A partir dos dados que você listou, podem acontecer situações muito diferentes. Quando o diretor é verdadeiramente um autor, ele pega um roteiro, adaptado ou não, e o transforma num universo ficcional seu. Digamos o Fellinni, por exemplo, tomou o Satíricon e criou um universo ficcional inequivocamente felliniano, com o qual o pobre Petrônio quase nada tinha mais a ver. Outros diretores não têm uma linguagem própria, ou não a usam em certas obras, simplesmente transformam em imagens o universo ficcional oferecido pelo roteiro. Neste caso, o “de”, o genitivo de posse, deve ir para o roteirista, sem nenhum desdouro para o diretor.
David França Mendes, sobre a cadeia de produção: Minha pergunta para o Marcilio se divide em três, em torno da mesma questão: você repetiria a experiência de ser seu próprio produtor? Onde você acha que acertou e o que faria diferente? Acha que os roteiristas devem ser tornar produtores?
MM: Repetiria, se tivesse a meu lado as mesmas pessoas que possibilitaram a realização de “O Crime da Gávea”, ou seja, meus sócios, o Eduardo Quental e a Lúcia Quental que, por acaso, são meus filhos. É difícil determinar os erros e acertos que aconteceram numa empreitada como esta. As maiores dificuldades se confundem com nossa inexperiência. Como maior acerto, só posso apontar a determinação. Foram cinco anos para terminar o filme. Só por esse tempo já dá para ter uma ideia da batalha. Sem uma determinação quase doentia, não teríamos chegado até aqui. Os roteiristas que tiverem possibilidade, disposição e determinação, acho que devem tentar produzir. Quantas vezes não acontece de o produtor para o qual trabalhamos só ter nas mãos o roteiro que escrevemos para ele? Tudo o que porventura vier a acontecer será em função do roteiro – financiamento, apoio e o próprio filme. E no final ainda corremos o risco de não receber ou termos os créditos omitidos. Então, havendo possibilidade, é melhor encarar a parada por conta própria. Por que dar para outro?
Péricles C. Barros, sobre as relações com o diretor: O convite a André Warwar para que dirigisse “O Crime da Gávea” já incluiu a informação de que a obra seria lançada/divulgada com a informação “Um filme de Marcílio Moraes”? Ou a opção pelo uso desta identificação (“Um filme de…”), associada ao seu nome, surgiu durante o processo de realização?
MM: A decisão de usar o crédito “Filme de Marcílio Moraes” surgiu durante a realização do filme, como explico em mais detalhes mais abaixo.
Você acha que o fato de André Warwar ser um diretor estreante na direção de longas pode ter facilitado a aceitação dele a este (justíssimo, na minha opinião) “Um filme de Marcílio Moraes”?
MM: O crédito “Filme de Marcílio” não foi atribuído em função de qualidades profissionais, tais como ser estreante ou veterano, bom ou mau. De forma nenhuma, o crédito deve ser encarado como uma desqualificação do trabalho do Warwar. O crédito decorreu do processo específico de elaboração deste filme, o qual tem roteiro meu, baseado em romance meu e direção de finalização – edição, música, sonorização, corte final – minha e dos meus sócios.
Numa eventual futura produção (em que você também seja o romancista da obra de origem, o autor-roteirista e o produtor), você abriria mão da contratação de um bom diretor caso este discordasse que o filme fosse lançado com a identificação “Um filme de Marcílio Moraes”?
MM: Um futuro filme, se houver, certamente, vai ter outra configuração. Quem sabe, numa próxima experiência, eu não me aventure a dirigir? Se tiver que contratar um diretor, vou levar em consideração, na assinatura do contrato, o quanto a tessitura do filme vai ser criada por mim. Aquilo que o Arriaga disse é a chave da questão: de quem é o universo ficcional que constitui o filme? Esse “quem” é o autor, sem a menor dúvida, a ele deve ser atribuído o tal “de”.
Juliana Reis, sobre a paternidade do filme: A ideia de dirigir o filme você mesmo te passou pela cabeça? A direção do André parece primorosa no trailer, tanto no tom dos atores quanto na cinematografia: o quanto disso é fruto da sua colaboração nessa concepção do filme filmado? Pensou em reivindicar crédito dividido com o diretor?
MM: Não me passou pela cabeça a ideia de dirigir o filme eu mesmo. Meu envolvimento com as filmagens ocorreu no decorrer do processo. Já na pré-produção, como produtor, me dei conta das dificuldades que viriam, em função dos recursos limitadíssimos, e revi o roteiro no sentido de lhe dar uma subjetivação total, passando a narrativa não simplesmente para a primeira pessoa, mas indo mais fundo, deslocando-a para dentro da cabeça do protagonista. Com isso, tive dois ganhos. Primeiro, o aspecto prático: sem a exigência realista, seria possível trabalhar com a escassez, ressignificar, na montagem, elementos visuais precários. O segundo ganho, foi de ordem estética: adoro o fluxo de consciência e a linguagem puxada para o expressionismo. Tenho vários contos escritos assim. Mas meu envolvimento maior aconteceu depois das filmagens, quando eu e meus sócios assumimos a direção de finalização, aí entendidas a edição, sonorização, música e corte final.
E para concluir, uma aula de mestre
Joaquim Assim, sobre personagens: Querido Marcílio, sempre tive o desejo de te perguntar: o que vem a ser exatamente um personagem?
MM: Joaquim, com tantos teóricos maravilhosos por aí, você pergunta logo para mim? Vamos ver se consigo dizer alguma coisa que preste. Pelo que lembro, a palavra vem do Latim ‘persona’, tradução do termo grego usado para designar a máscara que os atores usavam, que tinha um buraco para a voz sair. Daí, per sonare, falar através de (aquele buraco). Sendo assim, a primeira camada significante da palavra é o conceito de máscara, que já diz quase tudo, não?
Mas acho que você quer cutucar mais fundo. Quem é, ou o que é, aquele cara que a gente inventa e que de repente adquire vida própria? E mais, o quê exatamente constrói esse fulano, qual a sua substância? Como algumas descrições e falas, subitamente, criam na imaginação a figura de D. Quixote, nítida, definida, forte o suficiente para, junto com outro da mesma natureza etérea, o Sancho, se tornar um dos ícones da Civilização Ocidental? Tem que perguntar para o velho Cervantes, claro.
Indo mais longe, já que o nosso campo é a dramaturgia, ainda se impõe indagar como a incorporação, pelo ator, dessa figura, complica, ou aclara, a questão. Quantos atores, ao longo dos séculos, deram vida ao velho Queixada? O que posso dizer é que, por melhores que tenham sido, nenhum foi bom o suficiente para preencher todas as possibilidades que o texto oferece e assim se tornar definitivo, porque outros vieram e muitos ainda virão a encarnar o Cavaleiro da Triste Figura, antes que as traças da história comam as humildes palavrinhas escritas pelo velho Miguel.
Certo, falei, falei, mas a tua questão, “o que vem a ser exatamente um personagem?”, foi respondida? Chegamos à substância da coisa chamada ‘personagem’? Desconfio que não.
Aí lembro daquele outro velhinho, Aristóteles, que distinguia a questão “o que é um ser? de outra, “esse ser existe?”, para concluir que é possível definir a essência de um ser (resposta à primeira pergunta) que, na verdade, não existe, porque a definição não implica na existência. Será que por aí chegaremos a uma resposta satisfatória da tua indagação sobre o que vem a ser exatamente um personagem? São Thomas de Aquino partiu daí…
Espera aí, Joaquim, vou parar por aqui, porque senão torço os miolos ou acabo escrevendo um livro, e não tenho capacidade, talento nem cultura para tanto. Você queria rir da minha cara, confessa, seu sacana.
A conclusão que posso oferecer é aquela consagrada pelos bicheiros: vale o escrito. Não me sinto capaz de responder com exatidão a tua pergunta, o que um personagem vem a ser, mas tenho palpite sobre o único lugar onde o tipo de gente que ele é pode ser encontrado: no texto escrito.
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