Jornal do Brasil / Caderno B: “A Parábola quase absurda de Marcílio Moraes”

Imagem 1_Clipping MUMU__Jornal do Brasil_1.12.1975_

 

MUMU

Jornal do Brasil – Rio de Janeiro, segunda-feira, 1º de dezembro de 1975.

A parábola quase absurda de Marcílio Moraes

— Como se sente em relação à sua quase estréia como autor de teatro?

–Olha… essa pergunta sobre como a gente se sente em relação  a um fato são tão embaraçosas. Pelo menos para mim. Por que frente a um acontecimento dessa importância experimento uma variedade enorme de sentimentos, e sentimento muitas vezes contraditórios, que ainda não conheço bem. Então qualquer resposta será fatalmente um lugar comum. Para responder satisfatoriamente teria de me conhecer muito bem.  E eu não me conheço. Inclusive o ato de escrever, para mim, é também uma forma de auto-conhecimento , de descoberta de mim mesmo.

— Mas há sempre um sentimento preponderante.

— Não, não há.  Poderia dizer que me sinto feliz. Mas isso é o mesmo que não dizer nada. Feliz pela minha vaidade gratificada? Pelo sentimento de estar de alguma forma contribuindo para o conhecimento geral?  Pro me sentir realizado? Ou por estar causando inveja por meus desafetos? Talvez por tudo isso e muitas outras coisas.  E mesmo que enumere todas, não direi tudo. Por que apesar de feliz também me sinto triste. E seria muito difícil explicar por quê.

— Em Mumu, personagens se referem ao enterro de um autor de teatro, e o autor é justamente você. Por que você se matou na peça?

— Talvez por mera brincadeira, por simples curtição. Mas as brincadeiras têm sempre um sentido oculto, não são tão gratuitas quanto parecem. Já pensei nisso e acho que a resposta está ligada àquela tristeza de que falei. Thomas Mann certa vez disse numa carta ao irmão que a literatura é a morte. Inclusive esse é um tema muito caro a ele. Sinto algo semelhante.  Só resolvi me dedicar mesmo a escrever com 30 anos. E, no entanto, escrever sempre foi sempre algo que quis fazer.  Mas não assumia isso. Resistia ao máximo. As minhas neuroses me impediam de escrever. Mas isso não explica tudo. O caso é que queria viver a minha vida em toda sua plenitude. Não queria falar sobre a vida, queria viê-la no seu grau mais elevado. E tentava desesperadamente.  Mas há muita coisa no mundo que impede que o homem viva integralmente. Aos 30 anos fui obrigado a constatar que não tinha chegado onde queria, nem nunca ia chegar. A vida tal como sonhei um dia vivê-la, me estava vedada.  De certa forma foi uma confissão de derrota.  E então só me restou a literatura, só me restou falar sobre o objeto desejado, representá-lo ao invés de possuí-lo. Dessa forma, nada mais apropriado que eu me matar na minha primeira peça, por que de certo modo morri mesmo.

— Este fato aparece como tema daquilo que você escreve?

— Talvez isto seja o fundamento básico daquilo que já escrevi e virei a escrever. Ou seja, o que me interessa ao escrever é descobrir e equacionar tudo aquilo que se coloca entre a aspiração maior de vida que todo homem e a consecução desse objetivo.

 

— Você escreve então sobre esse mundo almejado e não atingido?

— Não. Não posso escrever sobre essa vida almejada porque é uma utopia, logo inconsistente em termos literários.  Escrevo sobre o que a torna impossível, sobre o que medeia entre o homem e sua utopia. E aí entra toda uma estrutura social, política, econômica e ideológica.

 

— Em Mumu está temática está presente?

— Com bastante nitidez, a meu ver, embora aquilo que seria propriamente a temática, ou seja, o que impede o homem de atingir sua utopia, apareça nesta peça como um elemento insólito, absurdo, logo, não explícito

 

— Por que este recurso ao absurdo?

— Dizia um conhecido pensador russo que qualquer fenômeno considerado isoladamente, sem que se estabeleçam as conexões e relações que mantém com outros fenômenos parecerá absurdo. Ora, o que acontece no Brasil de hoje é que as relações entre um fenômeno social particular e os demais fenômenos sociais não podem  ser explicitadas, não podem ser ditas. Então de alguma forma o absurdo tem de surgir. E tem surgido.  Basta você acompanhar a história recente da nossa literatura dramática.

 

 — A seu ver, nossa dramaturgia atual é fruto direto das condições gerais por que o país atravessa?

— Naquilo que ela tem de mais significativo, sim. É uma dramaturgia de circunstância, uma última possibilidade de se dizer alguma coisa, ainda que em parábolas.

 

— Mas o Plínio Marcos, por exemplo, há vários anos não consegue encenar uma peça.

— É verdade. Inclusive agora ele trava uma luta gigantesca para conseguir a liberação do Abajur Lilás. O caso de Plínio Marcos é realmente diferente. Não é uma falta de versatilidade para se adaptar às novas circunstancias. A meu ver, o tipo de dramaturgia a que o Plínio faz, sempre fez, ou seja, aquilo que ele tem a dizer não teria o menor sentido numa linguagem metafórica.  Então ele não tem outra alternativa senão lutar para conseguir dizer o que tem a dizer, na forma em que deve ser dita. E essa luta tem algo de heróico, que merece todo o nosso apoio. Ficará na história.

 

–A censura liberou seu texto inteiramente?

— Não. Houve cortes, mas não sei em que extensão. E nem consigo imaginar o que eles possam ter cortado, porque tudo nela é muito simples, sem alusão direta a nada.

 

— O que é Mumu?

Mumu é exatamente o elemento insólito, absurdo dentro da peça. Fora ele tudo o mais é puro realismo. A peça nasce exatamente da fusão desses dois aspectos contraditórios. Agora o que é não vou dizer porque pode ser muita coisa. E o que quero é que o espectador pense nessas muitas coisas, reflete sobre a condição daqueles personagens envolvidos com este absurdo sobre as causas e as conseqüências do seu comportamento. Pensando em Mumu, estará pensando nisso tudo.

— A peça terá duas montagens diferentes, esta agora no Rio e outra em São Paulo. Por quê?

— Antes de tudo porque sou um autor de muita sorte. Acho que é muito raro um estreante ter a possibilidade de ter seu texto encenado em duas concepções diferentes. O que aconteceu foi que recebi duas propostas de montagem quase ao mesmo tempo, todas as duas por equipes altamente profissionais e competentes. Duas propostas irrecusáveis para a minha condição de estreante. Consultei  todo mundo, todo mundo acordou e saíram as duas montagens.

 — O que você pensa da equipe que está montando a peça no Rio?

— Da melhor categoria. Um grande diretor, excelentes atores, um grande cenógrafo e um produtor jovem e dinâmico, interessado no desenvolvimento da dramaturgia nacional.

— Qual foi o prêmio que você recebeu do SNT?

— Foram 15 mil cruzeiros e a publicação  Os CrS 15 mil já recebi.  Mas a publicação até agora não tive notícia. Parece que o problema é que as peças que tiraram o primeiro e o segundo lugar (Rasga Coração de Oduvaldo Viana e A Invasão dos Bárbaros de Consuelo de Castro) estão proibidas pela censura.

–Além de Mumu, você já teve alguma outra experiência com a censura?

— Este ano tive uma peça proibida. Chama-se Como Castrar um Porco Chauvinista ou Só Engorda Quem Negocia. Foi proibida na íntegra. Do título ao ponto final por atentado à moral, aos bons costumes e essas coisas. Depois tive um outro texto que aliás não é meu propriamente porque tratou-se em princípio, de uma criação coletiva (Mimi FlaxFluxAtos Casa de Bolacha). Este passou e foi encenado por um grupo jovem: os atores eram os próprios personagens da peça.

 

— Como você vê o panorama atual da dramaturgia brasileira?

— Há pouco estava lendo o jornal e me dei ao trabalho de contar, entre as peças que estão sendo apresentadas, quantas eram nacionais. Pois bem, das 23 peças em cartaz no Rio apenas 7 são de autor nacional. Acho que isso dá bem a medida do que é o teatro hoje no Brasil.  Mostra exclusiva dos empresários, já que por trás há toda uma conjuntura global de amesquinhamento do nacional em função de know how, de modelos, de atitude e comportamentos importados que acabará levando ao completo e irremediável aniquilamento da cultura nacional.. E quando isto acontecer, vamos todos cair de quatro, que é a postura mais adequada a quem perdeu a dignidade.

 

— Você pensa somente em viver da sua atividade de autor?

— Se deixarem, sim. Mas o panorama não é muito animador, nem no teatro, nem na literatura, nem no cinema, nem na televisão. Se me chamasse Joe e morasse em Nova Iorque, poderia viver só dos direitos autorais de algum Best-seller vagabundo vendido apenas no Brasil. Mas me chamando Marcílio e morando apenas no Rio de Janeiro, talvez tenha mais é que ser bandeirinha de jogo de futeboi.

— Você acha que os concursos como esse em que você foi premiado, são uma saída para a dramaturgia nacional?

— De forma alguma.  Não que eu seja contra os concursos . Inclusive porque foi através de um deles que me lancei. Acontece que os concursos, pela sua própria natureza, podem promover a obra de alguns poucos privilegiados em detrimento da grande maioria dos autores. Neste concurso foram premiados cinco entre 370. Será porque os outros 365 são maus textos. Não  Só para dar um exemplo, o Pano de Boca, do Fauzi Arap, que é uma peça maravilhosa, estava concorrendo e não foi nem selecionada para leitura. Quer dizer, o resultado de um concurso é sempre muito relativo. E ainda que não fosse, isto não significaria que não pudesse ser uma saída para a dramaturgia nacional. Saída para a dramaturgia nacional é dar-se a todos os autores possibilidades de encenar seus textos , é dar-se ao povo , e não a uma minoria ínfima  de 1% da população, condições de ir ao teatro, ou seja, a saída para nossa dramaturgia está intimamente ligada à saída que a nação deve encontrar como um todo.